31/10/2001 - 10:00
Cálculos de analistas do mercado de câmbio indicam que cada notícia ruim vinda da Argentina, boato ou não, reflete uma valorização de 10% do dólar no Brasil, o dobro do impacto da guerra contra o terrorismo. Sexta-feira, 26, o ministro da Economia da Argentina, Domingo Cavallo, confirmou essa teoria. Ao chamar de “absurdas” as versões sobre uma possível dolarização da economia do país e de uma desvalorização do peso, o dólar comercial aqui reduziu na hora o ritmo de alta e a Bovespa ampliou seus ganhos. Em entrevista coletiva, o ministro admitiu estar aconselhando o presidente Fernando de la Rúa a processar as províncias que se negarem a assinar um pacto fiscal. Para poder cumprir a meta de eliminar o déficit fiscal e, assim, recuperar a confiança dos investidores, o governo precisa que os governadores aceitem um corte nos fundos que o Ministério da Economia lhes envia mensalmente.
A Argentina está à beira de suspender os pagamentos de sua dívida externa, a moratória que De la Rúa conseguiu adiar ao obter, em julho, uma ajuda financeira de cerca de US$ 8 bilhões do FMI. Para o editorialista do jornal americano Washington Post, o ceticismo dos investidores elevou muito as taxas de juros, o que praticamente impede que o governo cumpra com o serviço da dívida, de US$ 142 bilhões. São 39 meses de recessão. O desemprego pode chegar a 20% neste mês. O comércio passa aperto: dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) indicam que as vendas nos supermercados tiveram uma queda de 8,2% em setembro em relação a setembro de 2000. No movimento dos shopping centers, a queda foi maior ainda: 21,6% em relação ao mesmo mês do ano passado. Segundo interpretação do instituto, os argentinos não estão substituindo os produtos que consomem por similares mais baratos. Na verdade, estão deixando de consumir.
Por telefone – A credibilidade do ministro da Economia, Domingo Cavallo, não despenca apenas na Argentina. Num esquema de suposta surdina, ele foi para Nova York na segunda-feira 22, à noite, para tentar convencer investidores, o governo americano e organismos multilaterais de crédito a conceder uma nova ajuda financeira ao país. Fracassou em tudo: não pôde manter a viagem em segredo e só conseguiu pedir mais dinheiro ao FMI na quinta-feira 25, já de volta a Buenos Aires, e por telefone. Pediu recursos novos: antecipação da parcela prometida para dezembro, de US$ 1,26 bilhão; perdão para um possível desvio do plano de “déficit zero” no terceiro trimestre; e ajuda para o país obter garantias adicionais do BID e do Bird para uma nova troca de títulos. A resposta foi curta e grossa: o FMI está enviando uma tropa de técnicos para a Argentina nos próximos dias.
Foi o próprio Cavallo que criou essa história inverossímil do “déficit zero”. Fez isso porque estava com medo de não receber mais nada do Fundo e porque já na metade deste ano o país batia o limite máximo que estava programado para o déficit em todo o ano, de US$ 6,2 bilhões. O problema é que, se não cumprir a meta, o país terá muitas dificuldades para receber novos desembolsos. Daí a armadilha.
Cavallo não afunda sozinho. A crise bate no cargo do presidente: os justicialistas cogitam da renúncia institucional de De la Rúa, idéia do deputado Eduardo Di Cola, de Córdoba. “Um governo como este, que não governa, é o pior cenário para o país”, disse ao diário Página 12. No Congresso, a oposição e mesmo parlamentares ligados ao governo articulam acabar de vez com os superpoderes dados ao ministro Cavallo quando ele assumiu. Isso se ele não cair antes.
O governo federal deve às províncias mais de US$ 500 milhões por haver retido parte da participação de julho, agosto e setembro para conseguir o déficit zero e equilibrar suas contas. Não conseguiu e agora acirra o conflito com os 23 governadores e o prefeito de Buenos Aires, porque, em poucas palavras, quer tirar mais dinheiro deles.
Pacote – O tão esperado pacote econômico – que, entre outras coisas, prevê a redução de repasse de verbas para as províncias e a possibilidade de redução de juros de 20% para 7% nas dívidas locais com os bancos – não sai do papel e acaba com a paciência dos investidores. Na sexta-feira 26, logo depois da entrevista coletiva, o ministro Cavallo se reuniu com o presidente Fernando de la Rúa para, segundo ele, decidir os últimos detalhes das medidas que o governo anunciará em breve para impulsionar a recuperação da economia.
Sejam quais forem as mudanças, o novo pacote “não será um tiro de misericórdia na crise argentina”, disse o ex-presidente do Banco Central, Gustavo Franco, no Fórum das Américas, realizado na semana passada em São Paulo. De acordo com ele, as medidas serão vistas como uma boa notícia, dando sobrevida à economia da Argentina, “mas não será um pacote redentor”.
Autoridades argentinas dizem esperar que as mudanças fortaleçam o governo De la Rúa, que vem sendo combalido desde que assumiu, em 10 de dezembro de 1999. Primeiro, por um escândalo de suborno no Senado, depois pela renúncia do vice-presidente em outubro de 2000 (o país tem esse cargo vago) e também pelas frequentes mudanças no Ministério. As taxas de aprovação pública caíram para um dígito. O pacote deve oferecer possibilidades para mais críticas ao privilegiar investidores e passar por cima das iniciativas sociais: os pobres estão cada vez mais pobres na Argentina e a classe média está em vias de desaparecer. De La Rúa está com Cavallo, o que pode significar que ambos estão sozinhos. Com poucas armas à disposição, Cavallo ataca com a sua famosa artilharia verbal. “Estamos fazendo o possível, o impossível só Deus pode fazer. E não existem deuses na Argentina” foi o “tiro” mais recente.
Na alegria e na tristeza |
Não é à toa que os economistas brasileiros acompanham minuto a minuto o que acontece na Argentina. A explicação está no fato de os investidores internacionais (americanos e europeus, principalmente) enxergarem as duas economias como irmãs siamesas. Além da vizinhança, a Argentina é a segunda parceira comercial do Brasil – perde apenas para os Estados Unidos. Já o Brasil é o primeiro mercado para os produtos argentinos. Nos primeiros oito meses deste ano, as empresas brasileiras exportaram para lá US$ 3,7 bilhões. A recessão argentina acerta em cheio a balança comercial brasileira. O efeito só não foi maior porque a recente desvalorização do real em relação ao dólar, de mais de 30% desde o início do ano, serve para contrabalançar. O dólar dispara no Brasil a cada novo momento de “stress” na Argentina porque os tais investidores estrangeiros têm funcionado como o principal canal de oxigênio para a economia brasileira. O “gás” chega em dólares remetidos para o mercado nacional. Caso a crise argentina se agrave ainda mais, o resultado seria uma queda mais acentuada na quantidade de dólares que vêm do Exterior para financiar o Brasil. O agravamento da crise argentina neste ano, por sinal, ajuda a explicar a queda dos investimentos estrangeiros diretos no Brasil. O total de investimentos caiu 33% – passou de US$ 23 bilhões registrados em 2000 para US$ 15,3 bilhões de janeiro a setembro. O problema é que o Brasil precisa urgentemente desse dinheiro. A escolha entre uma das duas opções em que Argentina se debate – desvalorizar a sua moeda ou dolarizar completamente a economia, abrindo mão da sua moeda nacional – certamente afetará ainda o mercado de câmbio e as Bolsas brasileiras. No caso de uma desvalorização do peso, certamente provocaria uma onda de quebradeira por lá. Já a dolarização praticamente inviabilizaria o Mercosul. Também jogaria uma pá de cal sobre o projeto de construção de uma moeda comum. A saída menos traumática seria a criação de uma nova moeda para substituir o peso, desvinculada do dólar. Mas isso são os argentinos que terão de decidir. |