A água é como o ar – um bem natural renovável e infinito. Pelo menos era essa a visão predominante sobre o líquido que corre livre por nossos rios, mas esse pensamento tem mudado nos últimos anos. De um recurso à disposição de quem quisesse utilizá-lo, a água virou um bem econômico. Bastante valioso, se depender de uma polêmica medida que o governo vai pôr em prática ainda este ano: a cobrança pelo uso da água.

Poucos sabem, mas a água que sai de nossas torneiras é de graça. O valor que pagamos na conta refere-se apenas à sua distribuição e tratamento. O que o governo quer, por meio da Agência Nacional das Águas (ANA), criada no final do ano passado, é cobrar pelo uso da água bruta, aquela captada diretamente dos rios. Como as companhias de saneamento também arcarão com a nova taxa, o valor deve ser repassado aos consumidores para depois – pelo menos é o que o governo pretende – ser aplicado no tratamento de esgotos, despoluição dos rios, enfim, no melhoramento das bacias hidrográficas.

Empresas poluidoras de rios também serão cobradas por isso. Projeções do governo paulista mostram que uma cervejaria que consome um milhão de litros de água por dia pagaria irrisórios R$ 300 mensais pelo “produto”. Mas, caso essa mesma indústria polua um rio, pagaria por mês uma taxa 100 vezes maior. “O objetivo da cobrança não é reforçar o caixa do governo, mas fazer com que aqueles que sujam o rio ou tiram muita água de lá tenham uma sinalização de que causam problemas a outros usuários”, diz Jerson Kelman, presidente da ANA. O ideal é que menos água seja utilizada e mais esgoto seja tratado a fim de diminuir o valor a ser pago ao governo, defende Kelman.

O usuário comum só deve pagar cerca de 1% a mais na conta, diz o presidente da ANA. Parece pouco, mas o valor já cria polêmica. “Com certeza as companhias de saneamento vão repassar os custos adicionais e a inadimplência vai aumentar”, diz Maria Inês Dolci, consultora do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec).

A gestão dos recursos arrecadados com a cobrança é outro ponto polêmico. “Somos a favor da cobrança, mas contra a centralização dos recursos na ANA”, diz Antonio da Costa Miranda Neto, presidente da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento e secretário de Saneamento e Habitação do Recife. “O governo quer usar esse dinheiro para incentivar a privatização do saneamento, que é um serviço essencial”, acusa. De fato, um dos projetos da ANA visa justamente estimular investimentos privados na área. “A ANA vai pagar pelo esgoto tratado por quem construir estações com recursos próprios ou do mercado financeiro, em vez de financiar a construção ou compra de equipamentos”, diz Kelman sobre o projeto, que será lançado este mês pelo ministro do Meio Ambiente, José Sarney Filho.

A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) também é contra a cobrança pelo uso de recursos hídricos da forma proposta pela ANA, apesar de apoiar um projeto paulista. “Os valores que a ANA pensa em cobrar podem inviabilizar boa parte da indústria”, diz Angelo Albiero Filho, diretor de meio ambiente da Fiesp. Além disso, diz Albiero, o dinheiro arrecadado em São Paulo pode ir para Brasília e não voltar para o Estado.

Para evitar a centralização de recursos, o governador de São Paulo, Mário Covas, enviou um projeto de lei à Assembléia Legislativa que institui a cobrança pelo uso da água no Estado. “A diferença é que os recursos serão obrigatoriamente aplicados onde foram arrecadados”, diz o secretário de Recursos Hídricos, Saneamento e Obras do Estado, Antonio Carlos de Mendes Thame. São Paulo espera obter R$ 55 milhões anuais pela cobrança da água e R$ 300 milhões relativos à poluição.

Pelo menos no Ceará, Estado que cobra pelo uso da água bruta desde 1997, a medida se revelou um eficaz instrumento de racionalização. “Apesar de três anos consecutivos de seca, não falta água em Fortaleza desde 1999”, diz o secretário de Recursos Hídricos do Estado, Hypérides de Macedo. As empresas parecem ter descoberto que é melhor pagar e ter a garantia de abastecimento do que não desembolsar nada e ficar a ver navios com as torneiras secas.