Entre as andanças do juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, em salas sem grades e celas especiais e a chance da fraudadora do INSS, Jorgina de Freitas, de trocar o cárcere por serviços comunitários, o Brasil assiste aos privilégios concedidos a uma minoria de criminosos. Enquanto a maioria está amontoada em celas infectas, um seleto grupo tem direito à chamada prisão especial. Com quase 90 mil pessoas encarceradas, São Paulo tem apenas 28 desses presos “especiais”. Dos 219 mil detentos do País, estima-se que os privilegiados não cheguem a uma centena. Lalau e Jorgina estão em prisão especial. No caso do ex-juiz, pode-se dizer, especialíssima. O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu-lhe o direito de aguardar julgamento em um cômodo do casarão da PF em São Paulo.

Na estratégia de defesa de Nicolau, o próximo passo é transferi-lo para o regime de prisão domiciliar. Por lei, quando não há estabelecimento adequado para abrigar um prisioneiro, a saída é mandá-lo cumprir pena em casa. Mas, no Brasil, prisão domiciliar é ficção para a maioria, pois não há mecanismos para controlar a obediência à sentença. Ainda nesta semana, a proposta de introduzir no País o uso de braceletes eletrônicos para monitorar presos domiciliares será apresentada ao ministro da Justiça, José Gregori. A sugestão é da comissão de reforma do Código de Processo Penal, que agora debate a legislação sobre prisão especial.
Instituído nos anos 40 pelo Código do Processo Penal, o privilégio da prisão especial foi se ampliando de acordo com a força do lobby de cada categoria profissional. Em 1955, um decreto presidencial especificou as condições desse tipo de prisão. De acordo com o professor de direito do Processo Penal e secretário da comissão de juristas Petrônio Calmon Filho, acabar ou não com a prisão especial é uma decisão política que cabe ao Congresso Nacional. “Estamos analisando o decreto de 1955 e vamos propor mudanças nas disposições que se constituam regalia despropositada”, afirma Calmon Filho. Entre os privilégios da prisão especial está a visita de parentes próximos a qualquer hora do expediente.

Entre os juristas, não poucos defendem a manutenção da regalia. Também integrante da comissão que modificará o Código de Processo Penal, Luiz Flávio Gomes justifica o benefício devido às péssimas condições dos cárceres. “O governo não tem moral para pedir o fim da prisão especial enquanto não cumprir a parte dele”, diz Gomes. Criminalista há 40 anos, Tales Castelo Branco defende que a prisão especial é uma questão de direitos humanos. “Não dá para misturar um homem que passou a vida estudando com outro que se especializou em roubar e matar”, afirma. O privilégio, no entanto, está na mira do Congresso. Entre os projetos sobre o tema, há um do senador Roberto Freire (PPS-PE) que restringe a regalia àqueles que atuaram na área de segurança.

O TOPO DA PIRÂMIDE DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA DO BRASIL
Paula Simas

PC FARIAS
Em Brasília, ficou preso em sala especial na PM e, em Maceió (AL), ex- tesoureiro de Collor, teve a mesma regalia em quartel* dos Bombeiros.
Robson Fernandjes/AE

HILDEBRANDO
PASCHOAL
Coronel da PM na reserva, o ex-deputado tem direito a cela especial em penitenciária controlada pela PF no Acre
André Dusek

JOSÉ CARLOS
ALVES DOS
SANTOS
Após confessar fraudes no Orçamento, assessor de deputado ficou preso por assassinato em sala especial da PM.
Alan Rodrigues

VICENTE VISCOME
Condenado a 16 anos de prisão, o ex-vereador ficou em cela especial com Pimenta Neves e Mateus até ser transferido para presídio.
Prensa Três

EDIR MACEDO
Acusado de charlatanismo e estelionato, em 1992 o líder religioso passou 11 dias em cela especial de uma delegacia de São Paulo.
Fernando Pereira

MATEUS MEIRA
Autor do massacre no cinema do MorumbiShopping, o estudante de medicina ficou em cela especial até mudar-se para penitenciária.
AE

SALVATORE
CACCIOLA
Preso num spa no ano passado, o ex-dono do Banco Marka ficou em cela especial antes de escapar para a Itália.
Arquivo Pessoal

PIMENTA NEVES
Enquanto espera julgamento, o jornalista, que confessou o assassinato da namorada, divide cela especial com outros presos.
(*) Como os oficiais, civis presos em quartéis ficam em salas sem grades, e não em celas

Jorgina para crianças
Régis Filho
Trabalho na creche do juizado de menores

Condenada por crime de peculato, após desviar dos cofres do INSS o equivalente a US$ 114 milhões, Jorgina de Freitas cumpriu menos de três anos de uma pena de 14 em cela especial e acaba de dar um grande passo em direção à liberdade, ainda que restrita. Ela já conseguiu o aval para uma ocupação que justifique sua saída da prisão durante o dia, benefício concedido pelo Supremo em setembro de 2000. Por vontade da própria Jorgina, sua advogada, Virgínia do Socorro da Cruz, esteve na 1ª Vara da Infância e da Adolescência do Rio de Janeiro, no Centro do Rio, para uma conversa com o juiz Siro Darlan. Jorgina pretende trabalhar na creche da 1ª Vara. O juiz já encaminhou à Justiça um parecer favorável ao pleito. “Acho que todos têm o direito de se reintegrar socialmente”, disse Darlan. A creche assiste crianças encontradas nas ruas, antes de serem encaminhadas à adoção, e Jorgina trabalharia lá oito horas, sem remuneração. A creche recebe diariamente dez crianças, com idades até cinco anos, mas que não costumam ficar mais de dois dias no local.

Ela não tem data para começar o trabalho, pois ainda depende de cumprir os outros itens necessários para gozar do benefício, como exames social e psicológico e parecer de bom comportamento. Mesmo com um cotidiano de hotel e rotina de férias na Companhia Especial de Trânsito da Polícia Militar do Rio, a fraudadora já teve três episódios de transgressão disciplinar: usou celular e laptop sem autorização, esquivou-se da revista durante uma visita e desacatou um oficial da PM. Jorgina não pode reclamar de stress ou de falta de conforto. Divide a cela com uma presa e dispõe de diversos eletrodomésticos, como ar-condicionado, freezer, geladeira, duas TVs (uma para cada uma, para não dar briga) e videocassete. Ela ainda pode ter acesso a seu computador, sempre que solicita, e costuma encomendar refeições pelo telefone. Toda segunda-feira, Jorgina recebe a visita da manicure e do cabeleireiro. Das 10 às 11 da manhã, diariamente, pode ficar no telefone da carceragem. Resta saber se Jorgina é uma pessoa preparada para cuidar de crianças.

Clarisse Meireles