Se a eternidade permitisse chiliques, o escritor inglês Conan Doyle com certeza arrancaria os fios de cabelo ao ver seu mais famoso personagem, o detetive Sherlock Holmes, como protagonista da absurda aventura tropical de O Xangô de Baker Street (Brasil, 2001), comédia policial de época assinada por Miguel Faria Jr., que estréia em Brasília e no Rio de Janeiro na sexta-feira 19, e em São Paulo no dia 26. Na pele do engraçado ator português Joaquim de Almeida, Holmes aparece suando no banheiro, acometido de uma violenta diarréia, fruto da mistura de feijoada com vatapá. Mais adiante, com a barba por fazer e as vincadas calças de tweed nas canelas, mergulha nos braços de uma mulata voluptuosa, equilibrando numa mão um copo de caipirinha e na outra o indefectível cachimbo entulhado de maconha. Elementar, meu caro leitor: um filme de cenas irreverentes como estas tem tudo para ser um grande sucesso de bilheteria. E Xangô, baseado no best-seller homônimo de Jô Soares, com 530 mil cópias vendidas, não esconde a vocação.

A aguardadíssima produção consumiu cerca de R$ 10 milhões de olho num mercado mais amplo. É um ótimo exemplo de cinemão que assume o desejo do reencontro com o público brasileiro, esboçado desde o sucesso de Carlota Joaquina – princesa do Brazil, de Carla Camuratti. E a julgar pela reação das platéias aos lançamentos recentes, como A partilha, de Daniel Filho, que abocanhou 1,2 milhão de espectadores, o namoro está em fase adiantada.

A estréia de Jô Soares como romancista, que resultou neste filme bem acabado e divertido, trata do encontro entre a atriz francesa Sarah Bernhardt (a portuguesa Maria de Medeiros) e o detetive inglês Sherlock Holmes (Joaquim de Almeida) em pleno Rio de Janeiro do século XIX. Convidado para tentar resolver o desaparecimento de um violino Stradivarius, presente do imperador d. Pedro II (Cláudio Marzo) à sua amante, a Baronesa Maria Luísa (Claudia Abreu), Sherlock traz a tiracolo o amigo Watson (Anthony O’Donnell). Seu método dedutivo não dá muito certo e rende boas piadas. “É evidente que quando Sherlock desembarca no Brasil perde inteiramente a sua lógica depois de encontrar uma mulata e fumar maconha”, diverte-se Almeida.

Serial killer – Assim que chega ao Brasil, Sherlock é procurado pelo delegado carioca Mello Pimenta (Marco Nanini), às voltas com assassinatos de prostitutas que se repetem com as mesmas características – a expressão serial killer ainda não havia sido criada – e cercado por personalidades da sociedade pré-republicana, como o poeta Olavo Bilac (Marcelo Escorel), a maestrina Chiquinha Gonzaga (Maria Gallí) e o abolicionista José do Patrocínio (Maurício Gonçalves). O fictício marquês de Salles (Marcello Antony) e o livreiro Miguel (Caco Ciocler) sintetizam várias figuras da época. Jô Soares faz uma ponta como o desembargador Coelho Bastos – embora seu sonho fosse viver o delegado Mello Pimenta.

Para dar vida aos delírios do livro, a figurinista Marília Carneiro contou com 870 roupas completas e 30 perucas alugadas da loja londrina Angel’s. O cenógrafo Alexandre Meyer teve de se adaptar às locações feitas em lugares díspares como Petrópolis e a cidade do Porto, em Portugal, onde foram filmadas as cenas do Rio antigo.

Caipirinha – Desde que se envolveu com o projeto, Faria Jr. imaginou a história como uma soma de gêneros narrativos. “Quem me deu o tom do filme foi Nanini”, confessa o diretor. O resultado é uma bem dosada mistura de chanchada, Hitchcock e romance histórico, com momentos de tirar o chapéu. Bruno Stroppiana, produtor do filme, apaixonou-se pelo livro assim que o leu na Bahia, durante as filmagens de Tieta do agreste, em 1996. A idéia do produtor é que o filme siga o mesmo caminho do livro, sucesso na França e bem vendido em mais de dez países. O elenco estrangeiro ajuda. Maria de Medeiros e Joaquim de Almeida, ambos com grande prestígio internacional, foram as primeiras escolhas. Ela, porque domina o francês. Ele, um desejo do próprio Jô, que o convidou pela televisão portuguesa, enquanto dava entrevistas para o lançamento de seu livro naquele país. O inglês Anthony O’Donnell, o Dr. Watson, foi contratado através de um agente britânico. Foi uma das decisões mais acertadas, já que O’Donnell é o responsável pelas cenas mais hilariantes da história. Primeiro, quando inventa por acaso a caipirinha, envergando um chapéu de cangaceiro. Depois, ao incorporar uma pomba-gira, dando a maior bandeira. Para aprender todos os gestos e expressões da entidade, fez questão de visitar um terreiro e pedir permissão aos orixás. “Nunca se sabe com o quê estamos mexendo”, afirmou. Elementar, meu caro Watson.