24/01/2001 - 10:00
Sob um entardecer cinematográfico no Rio de Janeiro, no domingo 14, o recorte montanhoso de Jacarepaguá erguia-se soberano por trás do Palco Mundo, uma imensa tenda de 40m de altura e 88m de boca de cena, com design que lembra grandes tetas. Já suadas pelo gás despendido nas apresentações das primeiras bandas contratadas para o Rock in Rio 3, milhares de pessoas jogavam no ar a excitação de estar fazendo parte do maior festival de rock de todos os tempos, maior até do que os famosos eventos ingleses que anualmente costumam reunir a média de 120 mil fãs em três dias. Criado como uma espécie de Disneylândia musical, o Rock in Rio – uma produção de R$ 60 milhões – só nos seus três primeiros dias atraiu cerca de 550 mil aficionados. Também gerou 100 toneladas de lixo, que transformaram a monumental Cidade do Rock, construída dentro de uma área de 250 mil metros quadrados, na zona oeste do Rio, num grande transtorno. A produção garantia que, a partir da quinta-feira 18, seriam acrescentadas 300 latas de lixo para talvez amenizar o efeito drástico.
São sinais do gigantismo de um festival recheado de números estratosféricos. Na primeira etapa da maratona roqueira – que se encerra no domingo 21 – foram consumidos 260 mil sanduíches, 480 mil litros de chope e 400 mil de refrigerante. Uma ganância gastroetílica que acompanhou em efeito a altura do som e a qualidade da iluminação. Mas, se a tecnologia deu seu show, a organização exibiu seus escorregões ao escalar o baiano Carlinhos Brown para o mesmo dia da banda heavy Guns N’ Roses, grande estrela do primeiro final de semana, apesar de vir despertada de um sono de sete anos e chegar ao Brasil apenas com o vocalista Axl Rose como integrante original. Ávida por rock, a rapaziada provocou uma chuva de garrafas plásticas sobre o palco de Carlinhos Brown. Uma delas, cheia de água, acertou o rosto do cantor e compositor. É certo que Brown fez um show de qualidade bem abaixo das surpresas que ele alardeou. Mas a platéia provou ainda estar longe de participar do tal mundo melhor pregado pelo slogan do festival.
Na noite anterior, o clima foi bem mais ameno. Cássia Eller entrou com a luz do dia e deu um banho de vitalidade. Barão Vermelho, um show de competência. Roberto Frejat e sua turma abriram o espetáculo com Maior abandonado, grande referência ao velho Barão dos tempos do inigualável Cazuza, que com o grupo esteve na primeira edição do evento em 1985. Por ser mais conhecido, mais roqueiro, o Barão ganhou a simpatia do público e deixou para trás o californiano Beck. Apesar da sofisticação de seu som, ficou provado que não é para ser apresentado em grandes espaços. Ele também sofreu com a equalização e acabou criando dispersão na platéia. Diferentemente do R.E.M., que com seu rock melodioso fez todo mundo dançar. E rir. Certo momento, o vocalista Michael Stipe, com os olhos adornados por purpurina roxa, disse estar “doidão de ecstasy”. Foi a glória para os modernos, como a bela promoter Lívia Mello, 17 anos, que se destacava com suas lentes de contato azuis-turquesa no meio de roqueiros menos “montados”. Ainda que cheio de contradições naturais e próprias de um evento deste porte, o Rock in Rio provou ser um empreendimento bem-sucedido.
Funcionaram bem as plurais tendas Raízes e Por um Mundo Melhor. A primeira arregimentou atrações da música pop do Irã, da Finlândia e da Argélia, entre outros países de música pouquíssimo ouvida no Brasil. Na segunda, a tônica foi o ciclo de debates e documentários de cunho social. Espaço, diga-se, visitado com assiduidade. Não exatamente pelo interesse em relação aos palestrantes. Mas pelo ar condicionado e pelo escurinho, ambiente propício para muita gente ter tirado uma boa soneca. A tenda também reuniu tipos curiosos. Depois de participar de um debate sobre fé e espiritualidade, o indiano Dada Siddheshvarananda meditava em pleno gramado. Usando turbante e túnica laranja de algodão, Dada, 32 anos, cumpria uma de suas atividades de monge. “Minha vida, desde os 18 anos, é dedicada a renúncias a serviço da humanidade.” Renúncias que incluem quatro dias de jejum total por mês, de acordo com as mudanças da lua. Empenhado em atingir a tranquilidade espiritual, ele sentia falta dos mantras religiosos. Mesmo com tantos decibéis, Dada segredou sua maneira de bloquear o som do rock. “Quando estou meditando, consigo desligar e desconectar os sentidos e não ouço nada.”
O indiano não era o único a destoar da excitação reinante. Na tarde do domingo 14, por exemplo, Rafael Vilela, 24 anos, fazia da grama a cama de seu quarto, lendo Noite da taverna, do poeta romântico Álvares de Azevedo. A imensa platéia, no entanto, composta de jovens vindos de todos os lugares do País, ansiava por diversão. Eles não pararam de pular nas quase 12 horas de permanência na Cidade do Rock, sob um calor abrasador perto dos 40 graus centígrados, suavizados por jatos de água que saíam de carros-pipa e de um “refrescódromo” borrifando vapor d’água. Apesar do suor em excesso, o cheiro predominante no gramado veio dos cigarros artesanais. A brisa provocada pela fumaça da maconha irritou as autoridades cariocas. Só irritou, porque todos os guardas ficaram do lado de fora da Cidade do Rock. Decisão abalizada, pois não houve nenhum tumulto. Grande parte dos 4.178 atendimentos médicos aconteceu devido ao excesso de bebida alcoólica. De qualquer forma, o chefe de policiamento do Rock in Rio, delegado Fernando Moraes, avisou que o consumo de drogas seria coibido com rondas ostensivas no gramado.
Erva de cheiro – Um outro fator de preocupação, desta vez para o público, eram os preços altos. Descontado este inconveniente, a festa correu em ótimo astral com pessoas famintas por ver tudo. A Tenda Brasil foi um sucesso, oferecendo momentos intimistas que lembravam os melhores dias do Circo Voador. Lá se destacaram Sandra de Sá, o surpreendente Jair Rodrigues, Luiz Melodia e Arnaldo Antunes num show vigoroso, acompanhado da precisa guitarra de Edgar Scandurra, que também brilhou na ótima apresentação da sua banda Ira!, no Palco Mundo, em momentos conjuntos com o Ultraje a Rigor. Alternativa mesmo era a Tenda Eletro, sempre lotada de gente se esbaldando ao som hipnótico da trance music, uma das variações do tecno. Seu espaço calorento não atraiu apenas adolescentes. O comerciante Maurício Pinho, 42 anos, desfrutou bastante da rave. “O show do James Taylor está calminho demais”, dizia. Calminho mesmo, mas reverenciado pela generosa platéia em parte quarentona da sexta-feira 12. Noite marcada pela apresentação competentemente comportada de Sting, que relembrou sucessos de sua antiga banda The Police.
No domingo, uma das apresentações mais esperadas era a dos ingleses do Oasis. Com seu habitual xerox dos Beatles, no começo o grupo não alavancou. Depois da metade do show é que o vocalista Liam Gallagher levantou a platéia e conseguiu instigar os quarentões com o cover de Hey hey, my my (into the black), de 1979, talvez o maior hino pró-rock’n’roll, composto pelo canadense Neil Young, estrela do sábado 20. Houve toques nostálgicos do gênero e ondas moderninhas como a tenda para pintar os cabelos nas cores da bandeira brasileira. Um mico que fez muita gente se arrepender, depois de ver as melenas endurecidas e a tinta escorrendo com o suor pelo resto do corpo. Ao contrário do que se pensa, não é fácil ser excêntrico. A resposta do público para o resto das gracinhas distribuídas e para o festival como um todo foi positiva. De acordo com o publicitário Roberto Medina, organizador do evento, haverá um outro Rock in Rio em 2003. Neste espaço de tempo, a Cidade do Rock irá se manter de pé. “Tem que se despir de um sonho e vestir outro”, verseja Medina. “Criamos um novo parâmetro, inclusive para os gringos. Se morasse nos Estados Unidos, depois do Rock in Rio 1, estaria ganhando dinheiro, dando consultoria como o Donald Trump”, acredita o organizador.
Carlos Magno |
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Lívia: destaque numa multidão de roqueiros não “montados” |
Chororô – Medina desabafa assim porque teve de correr muito atrás de parceiros até conseguir um patrocinador de peso, no caso o portal America On Line, em cujo camarote vip aconteceu um regabofe à base de petiscos, pratos quentes, chope e uísque. Combustível suficiente para globais e nem tanto assistirem com empenho à apresentação dos Guns N’ Roses, que entrou no palco por volta das 2h já da segunda-feira 15. Falador como sempre, Axl Rose mostrou ressentimento com os antigos companheiros de banda, soltou palavrões e fez média com o Brasil em instante lacrimejante. Ao lado da brasileira Elizabeta Lebeis, a Beta, espécie de babá dele há sete anos e meio, os dois protagonizaram momentos típicos da novela Laços de família. Axl disse que ela o tirou do fundo do poço. Para a moçada fã da banda, entretanto, o melhor foi dançar o sucesso Sweet child o’ mine. No dia seguinte, afável, Axl Rose conversou com uma garotada na piscina do hotel enquanto entornava tequila e Cointreau. Isto é apenas rock’n’roll, mas todos gostam.