10/10/2001 - 10:00
Uma surpresa aguardava os fiéis que, obedecendo ao chamado do mulá, foram à mesquita de Kandahar para rezar naquela tarde de terça-feira 2. Quem os recebeu foi Muhammad Omar em pessoa – o “Amirul-Mumineen”–, supremo líder muçulmano e homem forte do regime Taleban do Afeganistão. Pela segunda vez em seu reinado no país, ele vestia as roupas sagradas do profeta Maomé. A relíquia, que se imagina ter coberto o corpo do messias de Alá, fica guardada a muitas chaves e só sai da urna que a abriga em ocasiões muito especiais. A exposição anterior à curiosidade pública aconteceu há cinco anos, no dia 3 de abril de 1996, quando o Taleban ocupou o palácio do governo na cidade. Naquela ocasião, o mulá Omar festejava vitórias com seus comandados. Desta vez, porém, os paramentos de Maomé prenunciam derrotas. O chefe-místico-guerreiro discursou pedindo empenho, ameaçando traidores e conclamando à Jihad (guerra santa). O inimigo estava à porta. A prova concreta disso é que a cena foi testemunhada por mujahedins (guerrilheiros) da Aliança do Norte (frente de oposição ao regime) e, pior, por seis soldados de elite do comando britânico SAS. Eles estavam misturados à multidão, fazendo os últimos acertos para o ataque destinado a acabar com o governo fundamentalista do Taleban.
O líder afegão lançou desafios contra as forças que se aglomeram nas fronteiras e dentro do próprio país e apelou para a solidariedade dos muçulmanos endinheirados de outras nações. Exigiu dinheiro em nome de Alá para a Jihad. Depois disso, saiu da cidade em busca de refúgios mais seguros nas montanhas. A história foi contada por um diplomata do Reino Unido na ONU e comprovada por uma fonte da força de contraterrorismo de Nova York. Na versão dos americanos, o sheik Omar estaria “all dressed up and nowhere to go” (todo empetecado e sem ter aonde ir). Na verdade, o líder do Taleban não precisa ir a lugar algum fora do inóspito terreno de seu país. Que ninguém imagine Muhammad Omar fugindo de medo. Aos 39 anos, ele é veterano de inúmeras batalhas contra soviéticos e quase todas as facções guerreiras do Afeganistão. Foi ferido quatro vezes. Numa delas, um estilhaço de morteiro acertou seu olho esquerdo, que ele próprio arrancou da cavidade craniana, numa impensável operação de automedicação. Covarde, portanto, Omar não é. Sua fuga da cidade onde governa o país faz parte de uma estratégia corriqueira em tempos de guerra. Por exemplo: logo após os ataques do dia 11 de setembro, que atingiram as torres do World Trade Center, em Nova York, e parte do prédio do Pentágono, em Washington, toda a cúpula de liderança política dos Estados Unidos foi dispersa e acomodada separadamente em abrigos antiatômicos. O presidente George W. Bush fez peregrinação pelo território americano, sendo levado a várias bases militares antes de aterrissar em Washington. Foi duramente criticado por isso e sua assessoria de imprensa inventou a história de que o Air force one, o avião presidencial, era um dos alvos do terror. De todo modo, a praxe é dispersar lideranças em caso de ataque. E a ofensiva contra o Taleban já começou.
Na primeira semana de outubro, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas condenou por unanimidade os atos de terror e começou a preparar um protocolo sobre o terrorismo internacional. Pelos corredores do prédio da ONU em Nova York, o ambiente era o de uma convenção de lavadeiras: as fofocas e boatarias corriam soltas. Um diplomata egípcio garantiu a ISTOÉ que o Taleban estaria prestes a entrar num acordo para a entrega de Osama Bin Laden para a Arábia Saudita ou a Síria. Nesse plano muito improvável estaria o reconhecimento do futuro Estado palestino pelo governo dos Estados Unidos. A cabeça de Osama seria servida numa bandeja de prata, depois de ataques aéreos americanos a bases da Al Qaeda, a organização do terrorista saudita. Essa manobra livraria a honra do Taleban frente aos países muçulmanos. A idéia apresenta, porém, pouco fundamento. O mulá Muhammad Omar, por exemplo, que fala mais alto no regime, é casado com uma das filhas de Bin Laden. “Não me parece provável que ele vá entregar o sogro”, diz um diplomata americano.
No entanto, outros rumores pareciam ter pelo menos um fundo de verdade. ISTOÉ conseguiu confirmar com fontes do serviço de inteligência americano que o egípcio Ayman al-Zawahiri, o segundo homem da hierarquia da Al Qaeda, já está fora do território afegão. Não se tem certeza sobre seu paradeiro, mas existem indicações fortes de que seu novo endereço tenha código de endereçamento postal no Iraque. “Há dez dias, uma figura política importante foi recebida por Saddam Hussein num de seus palácios fora de Bagdá. Temos suspeitas, baseadas em informações de dentro do regime, que esta pessoa era Ayman al-Zawahiri. Só não podemos saber se ele continua no país. Mas é de se perguntar: para onde ele iria?”, diz a fonte. A resposta evoca muitos países e a extrema astúcia de um homem que já conseguiu burlar os serviços secretos de várias nações, entre eles o dos EUA. Ayman al-Zawahiri entrou em território americano em 1992, mesmo estando na lista de terroristas procurados. Fez mais: recolheu doações para a causa, fez proselitismo, foi a células terroristas no país para verificar o andamento dos negócios e até escolheu pessoalmente alguns alvos para ataques.
O mestre – Ayman era médico conceituado no Cairo quando ajudou a fundar o grupo radical al Jihad al Islami (Jihad Islâmica) egípcio. A organização conseguiu assassinar o presidente Anwar Sadat, em 1981, e cometeu vários atos sangrentos, entre eles a morte de turistas em vários pontos do país. Tentou também assassinar o sucessor de Sadat, o atual presidente do Egito, Hosni Mubarak. Mas os órgãos de repressão egípcios são famosos por sua brutalidade e aplicaram toda sua capacidade selvagem na luta contra a Al Jihad. “Em dez anos eles conseguiram desbaratar a organização, que hoje sobrevive com um quarto de seu antigo poderio”, diz Alexander Barzali, expert em organizações terroristas da Universidade do Cairo. O problema é que muitos militantes se espalharam pelo mundo e agora combatem em nível internacional. E Ayman é quem conseguiu o maior feito: ele foi o doutrinador de Osama Bin Laden. “Sem Bin Laden, a Al Qaeda continuaria funcionando perfeitamente, caso Ayman al-Zawahiri continuasse solto”, diz Barzali. Ou seja: trata-se do encantador de serpente, que pode virar dono do circo.
E onde estaria Osama Bin Laden, o homem mais procurado do mundo? “Ninguém sabe”, diz Frank Ricce, ex-chefe do escritório nova-iorquino do FBI. Pelos escaninhos da ONU, brincava-se de adivinhação: Uzbequistão, Chechênia, Albânia, Argélia, Iraque, Síria (onde vive sua mãe), Iêmen, quem sabe no Paquistão? Todos locais prováveis, mas não há indícios concretos de que Osama tenha mesmo imigrado. “O que me parece certo é a saída dele do Afeganistão. Quando o Taleban falou que o mantinha escondido, como se fosse uma espécie de prisioneiro de luxo, logo imaginei que o homem havia saído do país”, diz Ricce. Mas se Osama saiu mesmo do território afegão, quem toma conta da lojinha? Ou seja: quem vai comandar as tropas do Al Qaeda na resistência ao ataque que virá?
Mohammed Atef é o nome do comandante militar da Al Qaeda. Ex-policial egípcio, ele é sogro do filho predileto de Bin Laden. No casamento de Mohammed Bin Laden, um dos guarda-costas do pai, de 19 anos, estava a fina flor do radicalismo islâmico. No ágape seguido da cerimônia, Osama foi acometido pela musa da poesia e cometeu versos que falavam em sua alegria em ver pedaços de corpos de infiéis voando pelos ares depois de explosões. Atef é outro dos fundadores da al Jihad al Islami e é tido como gênio de estratégia militar. Caberá a ele a difícil tarefa de combater as tropas de oposição ao Taleban e as forças ocidentais. Na probabilidade quase certa de perder esta batalha, Atef seguirá na guerrilha, como fez naquele mesmo país durante a ocupação soviética.
Tática diversa – “A diferença entre essa campanha de agora e a soviética dos anos 80 é que nós não vamos repetir o erro de querer ocupar o território e manter forças militares no país”, disse a ISTOÉ o general da reserva Wesley Clark, que foi o comandante das tropas da Otan (a aliança militar ocidental) na campanha do Kosovo. A missão, segundo o general, é desentocar Osama e seu Estado-Maior. “E se o Taleban, ou qualquer outra força, tentar impedir isso, também vão ser combatidos”, disse Clark. A estratégia agora é consolidar a aliança interna que se forma. “Por enquanto, nós apenas fornecemos armamento, material, alimentos e inteligência para a Aliança do Norte. E, apenas com isso, já foram tomadas regiões importantes que estavam nas mãos do Taleban”, diz uma fonte do Departamento de Defesa. No mapa das conquistas recentes estão as consolidações de domínio em pontos estratégicos, como o front cuja linha demarcatória é o rio Kowkcheh, que vai da fronteira do Tajiquistão até o desfiladeiro de Farkhar. Segura nas mãos dos rebeldes, desde a semana passada, também está a importante cidade de Mazar-e Sarif, onde fica a bifurcação da estrada que liga Cabul ao Uzbequistão e é via de abastecimento para a Aliança do Norte. “As forças de oposição mantêm Cabul quase que sitiada. Depois de um bombardeio cirúrgico atingindo pesadamente alvos estratégicos do Taleban, como armazéns de armas, hangares de aviões, garagens de veículos blindados, depósitos de combustíveis e alojamentos de tropas, Cabul pode cair em questão de dias”, garante a fonte do Departamento de Defesa.
“A mais importante carta que os Estados Unidos vêm mantendo em sua mão é a pressão sobre os barões das drogas”, diz Ben Hume, ex-agente da DEA (departamento antinarcóticos americano) com muita experiência no Afeganistão. “Quando o Taleban tomou conta da maior parte do país, o domínio dos campos de plantação e da estocagem de drogas foi considerado prioridade. É com o dinheiro dos impostos pagos pelos grupos de traficantes de ópio – a matéria-prima da heroína – que o regime conseguiu recursos financeiros para se manter e comprar alianças com tribos independentes, sem as quais poderia pôr em risco o equilíbrio militar na região. O Ocidente elogiou a destruição dos campos de papoula de certas partes do país, mas aquilo, sabe-se agora, foi mais uma manobra para reduzir a oferta do produto e aumentar seu preço. Estão estocadas no Afeganistão cerca de 400 toneladas de ópio, que, transformados em heroína, podem chegar tranquilamente a três milhões de toneladas”, diz Hume. “Minhas informações são as de que os barões das drogas estão muito agitados e descontentes com esta atenção do mundo. A guerra é um mau negócio para as drogas”, completa o agente.
Deserções – A irritação dos traficantes já custou a deserção do senhorio de Helmand, o maior centro produtor de ópio do Afeganistão, responsável por dois terços da heroína do mundo. Durante a ascensão do Taleban, Helmand foi tomada sem o disparo de um único tiro. O acordo que se fez com os líderes da região era uma parceria na qual o governo forneceria proteção e caminho livre para as exportações do maior produto local. O medo de que o presidente Bush cumpra a ameaça de também bombardear os armazéns de estoque da droga fez com que os chefes do tráfico virassem agora suas armas contra o regime. E o que é pior: cooptaram os comandantes militares do Taleban na região. Deserções como esta estão pipocando em todas as áreas de produção de droga. O ataque ocidental, porém, só virá depois que o secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, voltar aos EUA.
O início dos ataques contra o Taleban chegou a ser anunciado pela imprensa britânica para acontecer na terça-feira 2. Na verdade, o sheik Omar nem precisava se valer das roupas de Maomé. Os americanos e seus aliados britânicos ainda fariam mais um assalto no front diplomático antes do lançamento dos mísseis sobre alvos estratégicos no Afeganistão. Enquanto o secretário da Defesa americano peregrinava pelo Oriente Médio e pela Ásia Central costurando alianças contra a rede de terror de Bin Laden, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, seguia para Moscou, ex-repúblicas soviéticas e Paquistão para acertar os detalhes de um ataque massivo. Mas, assim como o tecido das alianças políticas internacionais tem seu preço, também nos campos do Afeganistão é possível comprar amizades de momento. Se tudo correr de acordo com os planos de Washington, não será preciso desperdiçar munição. Os americanos sabem que custa mais barato comprar as pessoas do que matá-las.
Terrorismo e paranóia |
Uma onda de ações terroristas varreu o mundo nesta semana: ataques na Caxemira, na Espanha e na Colômbia. A queda do avião russo na Ucrânia deu sequência à paranóia de que terroristas foram os responsáveis pelas duas tragédias. Na Caxemira, região em disputa entre Índia e Paquistão, o grupo extremista islâmico Jaish-e-Mohammed assumiu o atentado de um caminhão-bomba que matou, na terça-feira 2, cerca de 38 pessoas e feriu 60 na capital Srinagar. Em Vitória, na Espanha, o grupo separatista ETA explodiu um carro-bomba em frente ao Palácio da Justiça, ferindo uma pessoa. Na Colômbia, a ex-ministra de Cultura Consuelo Noguera foi morta na segunda-feira 1º pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Em Toulouse, na França, existe a suspeita de que a causa da explosão de uma fábrica no dia 21 de setembro, que matou 29 pessoas, tenha sido terrorismo. O mais controverso, porém, foi a queda nas águas do mar Negro, na quinta-feira 4, do avião russo Tupolev-154, da Sibir Airlines, que levava 77 pessoas. Três hipóteses foram consideradas para explicar a explosão que aconteceu três horas depois de a aeronave decolar do aeroporto israelense Ben Gurion rumo a Novossibirsk, na Sibéria. Pode ter sido atingido acidentalmente por um míssil ucraniano, sofrido um ataque terrorista ou ter tido problemas mecânicos. A Rússia diz que foram os terroristas, mas os EUA descartam essa possibilidade. Eles apostam na derrubada por um míssil, uma vez que inicialmente a Marinha da Ucrânia admitiu essa probabilidade, ao confirmar a realização de manobras militares a 250 quilômetros do local do acidente. |