A cena exigia seis câmeras para filmar num auditório de televisão a sequência final de Beatles – os reis dos iê-iê-iê (A hard day’s night, Inglaterra, 1964), que será relançado no Rio de Janeiro e São Paulo na sexta-feira 2 em cópias novas, com trilha sonora digitalizada. Um dos operadores posicionava-se no meio da platéia lotada de fãs dos Beatles, que iniciavam sua escalada mundial de sucesso, mas na Inglaterra já era a banda do momento. No quarto dia de filmagem, o pobre do câmera não resistiu e teve de ser levado com urgência ao dentista. Não pelos eventuais sopapos das mulheres ultrapassando o ataque de nervos. É que a gritaria era tanta e o barulho tão ensurdecedor que o homem sofreu um abalo dos dentes traseiros. Quem revela a história de sabor tragicômico é Richard Lester, o diretor daquele megassucesso cinematográfico, que ajudou ainda mais a alavancar a carreira dos Beatles nos Estados Unidos e reuniu o mundo jovem de então num culto de alegria e total devoção ao grupo mais importante que a indústria pop-rock já criou.

No Brasil, o endeusamento em torno dos Fab Four e, claro, do filme – que agora ganhou a palavra Beatles antes do título original em português Os reis do iê-iê-iê – também teve suas proporções astronômicas. Não havia adolescente que não contabilizasse o número de idas ao cinema. Cinco vezes era o mínimo para quem quisesse entrar na disputa. Filmado em apenas três meses e lançado em julho de 1964 no London Pavillion, a estréia provocou um dos maiores congestionamentos da história de Piccadilly Circus, a famosa praça da estátua do cupido, no coração da capital inglesa. Não era para menos. Com os Beatles iniciava-se uma era de idolatria em massa capaz de provocar espasmos, histeria, ditar moda, comportamento, um gosto musical que nunca saiu de moda a ponto de as melhores bandas da atualidade como Oasis serem totalmente calcadas no som da rapaziada de Liverpool. Fez escola Os reis do iê-iê-iê, título boboca vindo do batismo que a imprensa deu ao novo ritmo, já que muitas das canções em inglês tinham o refrão yeah! yeah! yeah! Hoje, pode ser considerado a pré-história do videoclipe, tal a velocidade de cortes, mistura de cenas documentais com ficção e números musicais.

Revisto depois de quase quatro décadas, é um delicioso registro de época com alegre sabor nostálgico. Ou melhor, mais que um registro pois é um retrato fiel dos costumes, sem o olhar de pesquisa de muitas produções atuais que remetem àquele passado. Não deixa de ser divertido ver os “moderníssimos” aparatos tecnológicos da televisão inglesa dos anos 60, agora verdadeiras peças de museu. Também é interessante constatar a inocência da década, embora em nenhum momento deixa-se de ver os Beatles fumando ou com um copo de bebida à mesa. Guardadas as devidíssimas proporções, atualmente nenhum adolescente presencia qualquer alusão ao álcool ou ao fumo num filme da Xuxa, por exemplo. Em compensação todos ficam com os olhos exaustos de tanto piscar diante das cenas violentas. Cada moral é proporcional ao seu tempo.

Humor – O roteiro é costurado com a divertida presença do “avô” de Paul McCartney, interpretado pelo ator inglês Wilfrid Brambell. Mostra cada um dos rapazes, seu humor, suas veladas idiossincrasias. Assim, John Lennon é o rebelde e anarquista, Paul, o galã, George Harrison, o tímido e Ringo Starr, o palhaço de ares chaplinianos. Quase sem história, o filme descreve um dia na vida do grupo, o trabalho para fugir das fãs, a chatice dos compromissos e a necessidade de liberdade. Os quatro ainda estão longe de exibirem o futuro visual revolucionário da época de Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, o disco mais importante da história do rock. Todos ainda conservam suas carinhas suburbanas, de quem veio da classe média baixa da cidade portuária de Liverpool. Quanto ao som, apesar da aparente simplicidade na estrutura, nota-se o início de uma chacoalhada no mundo pop com músicas do porte de A hard day’s night, If I feel, And I love her ou I should have known better, que integram a trilha sonora. Canções que nunca deixaram de ser ouvidas, até mesmo pelos filhos dos hoje quarentões e ainda beatlemaníacos de carteirinha. 

Lembrados para sempre
Fotos: Reprodução/ Renato Velasco
HARRISON, o livro de Lennon dedicado a Sean e o álbum 1: produtos de vendas inesgotáveis

O ano 2001 promete uma série de produtos para a alegria dos beatlemaníacos mais vorazes. São eles, afinal, que há 14 semanas mantêm o livro Beatles anthology na lista dos mais vendidos no mundo inteiro e, em dois meses, já compraram 23 milhões de cópias do álbum 1 – 300 mil no Brasil. Dentro da infindável esteira de lançamentos relacionados aos Beatles, a eterna viúva Yoko Ono trouxe à tona gravações inéditas de John Lennon. As canções estão incluídas nas versões remasterizadas dos discos Plastic Ono Band e Double fantasy. Ilustrações do beatle assassinado aos 40 anos, em 1980, também podem ser curtidas nas páginas de Amor de verdade – desenhos para meu filho (Salamandra, 40 págs. R$ 14), dedicado a Sean. Paul McCartney – que está lançando na Europa o livro de poesias Blackbird singing, inspirado na falecida mulher Linda – resolveu lembrar um pouco seu trabalho solo. Enquanto não volta aos estúdios, cuida dos últimos retoques em Wingspan, especial para a televisão britânica sobre o grupo Wings, formado nos anos 70.

Ringo Starr é outro que entrou na onda. Promete lançar em breve no Exterior Anthology and 10 years anniversary, CD triplo trazendo o registro das turnês de sua All-Starr Band. Até o normalmente quieto George Harrison, que não surge com um álbum próprio desde 1987, resolveu dar as caras. Relança em CD duplo o vinil triplo All things must pass, de 1970, sua estréia na carreira solo. A nova versão inclui faixas inéditas, takes alternativos e uma nova gravação de My sweet Lord, seu maior sucesso, que lhe valeu um processo por plágio. Tudo passa, menos os Beatles.

Luiz Chagas