03/10/2001 - 10:00
Delicado, brincalhão, flexível e generoso com as diferenças religiosas, dom Eusébio Oscar Scheid – que assumiu a Arquidiocese do Rio de Janeiro, em substituição a dom Eugênio Sales – se declara a favor da descriminalização das drogas em todo o mundo. Essa postura contemporânea se contrapõe à não admissão do divórcio e do homossexualismo. Aos 68 anos, dom Eusébio possui um currículo de vida totalmente dedicado à Igreja Católica. Catarinense de Luzerna, foi ordenado padre aos 28 anos, estudou teologia em Roma e foi arcebispo de Florianópolis desde 1991. Ele chega ao Rio “com o coração cheio de amor” e disposto a criar uma escola de formação política para, no mínimo, ensinar que para ser um bom cristão é necessário ter espírito de cidadania. E, se sobrar um tempinho, assistir a uma partida de seu time preferido: o Bangu.
ISTOÉ – Todas as religiões pregam a paz, mas as guerras têm acontecido em nome de intolerâncias religiosas. A guerra santa faz algum sentido?
Dom Eusébio Oscar Scheid – Eu corrigiria: não são todas as guerras, só algumas. Mesmo assim, acontecem mais por questões ideológicas. Há uma expressão filosófica contradictio in terminis (contradição verbal) para aplicar quando é impossível conjugar duas palavras tão estranhas entre si como guerra e santa. Guerra é morte; santo é algo abençoado. Eu jamais apoiaria a nomenclatura ou o fato de alguém chamar guerra de ato sagrado.
ISTOÉ – Qual sua opinião sobre os atentados em Nova York e a possível retaliação americana?
Dom Eusébio – O terror precisa ser eliminado, mas não é uma guerra contra um país que vai eliminá-lo. O que foi feito contra os EUA foi uma barbárie. Creio que deva haver uma ação conjunta de todos contra o terrorismo e suas causas, que são: desigualdade, hegemonia e prepotência. Espero que o ato que se vai fazer não seja pior do que o que já foi feito. Que mais inocentes não morram pelo fato de seu país aninhar quem pratica terrorismo. Que os EUA tenham cabeça esclarecida para não se guiarem só por emoção.
ISTOÉ – O sr. é a favor da descriminalização das drogas no mundo?
Dom Eusébio – Evidentemente que a estratégia é essa. A droga é nociva aqui e em todo o lugar. Descriminalizá-la no mundo inteiro seria um passo importante para a humanidade. Acho que não aumentaria o número de usuários, pelo contrário. Mas a mídia – e eu não me excluo porque também tenho espaço nela – tem de fazer uma campanha sobre o mal que a droga causa, há que se preparar para tal passo. Sabemos que há muitos interesses, grandes capitais investidos no mercado da droga. Entrar nesse campo é que é o problema.
ISTOÉ – Temas como esse estariam presentes na Escola de Formação Política que o sr. pretende criar?
Dom Eusébio – Todo cidadão, antes de ser cristão, é um ser político. Eu penso que uma escola de formação política deveria dar os ideais éticos e evangélicos na condução da coisa pública. Quem ocupa a política não pode, de repente, se tornar dono de todos os recursos disponíveis. O bem comum é o que mais nos falta, acima das siglas partidárias. Depois, divulgar o ensinamento da doutrina social da Igreja, que se conhece pouco. Então, uma visão cristã da política não é criar siglas partidárias cristãs. É formar, dentro dos princípios cristãos, os verdadeiros políticos atuantes, militantes com conteúdo e não apenas com dizeres. E muito menos com a demagogia que, infelizmente, dominou séculos de nossa política.
ISTOÉ – As muitas denúncias de corrupção significam evolução da consciência coletiva?
Dom Eusébio – A mídia ajudou muito para que tudo se tornasse público e entrasse na mentalidade do povão. Agora, essas denúncias estão aparecendo também porque são tão escandalosos os casos. Violação de segredos, descarada apropriação de somas que pertencem ao povo, a própria luta desonesta de um partido contra outro.
ISTOÉ – O governador Anthony Garotinho é evangélico e cita Deus e a Bíblia em discursos. Isso pode causar algum constrangimento no relacionamento com o sr.?
Dom Eusébio – O fato de citar princípios bíblicos, em si, não tem nada a ver. Errado seria se locupletar para uma promoção partidária ou eleitoreira. O governador foi muito simpático, educado, conversador, na cerimônia da posse. Ficou lá até o fim, mais de três horas. Eu terminei dizendo que jamais se pode instrumentalizar o evangelho. Para quem é inteligente, está claro. Deixamos aberta a porta do diálogo.
ISTOÉ – Falta Deus no coração dos políticos ou vergonha na cara mesmo?
Dom Eusébio – É falta de sensibilidade moral, sei lá, humanitária. Acredito que essa corrupção se baseia na própria falta de visão do homem, de direitos humanos, de respeito à pessoa. O que, infelizmente, está acontecendo é que a política está desacreditada. Causar o descrédito é o pior crime.
ISTOÉ – Qual a relação da Igreja com o MST?
Dom Eusébio – A Igreja não está de acordo com certas estratégias e modos de agir com violência que o MST passou a adotar. Não há relação entre os dois. Isso não significa que muitas pessoas da Igreja não tenham simpatia pelo MST. É uma das poucas forças que se opõem ao desmantelamento do bem comum que aí está. Muito do que se conseguiu em reforma agrária, que não é tanto assim, se deve bastante ao MST.
ISTOÉ – Censos mostram número menor de católicos no Brasil. Isso preocupa?
Dom Eusébio – O que vale não é o número, mas, sim, a qualidade, a consciência e o aprofundamento de vida de cada cristão. As estatísticas refletem um movimento ondulatório. Agora, se procura o imediatismo, buscam-se milagres, esoterismo, para não dizer coisas piores. A Igreja tem muita massa, povo, e às vezes o atendimento personalizado deixa a desejar. Hoje, a tendência é globalizante, mas a procura individual é pelo contrário, o que leva às vezes a uma igreja menor, circunstancial. A facilidade com que determinadas denominações criam igrejas é impressionante. É como se criassem um time de futebol, um clubezinho.
ISTOÉ – O sr. tem simpatia pelo Movimento de Renovação Carismática? E pela missa-show?
Dom Eusébio – Tudo o que é inovação na Igreja e tem princípios e resultados bons deve ter o nosso apoio, mesmo que não comunguemos com a metodologia, com a estratégia de operação ou modo de externar. Mas não tenho dúvida de que a Renovação Carismática bem conduzida é um grande dom para a Igreja porque faz a pessoa rezar mais, ter maior amor à Bíblia. A missa-show é outra coisa, diferente do movimento. Tenho muita simpatia pelo padre Marcelo Rossi. Ele atrai uma parcela que ninguém atraía. Deixa a pessoa entusiasmada por causas boas. Mesmo se fosse só pelo show, o fato de participar de um ato desses já seria um bem. Sou amigo do padre Rossi. Ele deveria tentar levar esse movimento de entusiasmo maciço a um aprofundamento maior.
ISTOÉ – O que o sr. pensa sobre o divórcio, o aborto e o homossexualismo?
Dom Eusébio – A palavra de Cristo é clara: o que Deus uniu nenhum homem separa. É preciso ver se o primeiro casamento foi realmente válido e se não houve causas, que não de amor, que intermediaram a união. A Igreja é e será sempre pela indissolubilidade do matrimônio. O aborto é o pior crime que existe. Matar um inocente! No caso de estupro, o agressor é o estuprador, a criança é inocente. É erro filosófico gravíssimo dizer que a mulher tem direito a seu corpo. A criança que vai nascer depende em tudo da mulher, mas não é parte do corpo dela. Por último, estamos longe de saber o que leva ao homossexualismo. É um fenômeno. Por isso a pessoa que está nessa situação merece todo o respeito. Ela pode não ser culpada, e, mesmo se for, ainda é digna de respeito. Afinal, quem é que não erra?
ISTOÉ – O sr. teme a violência do Rio?
Dom Eusébio – A violência assusta em qualquer lugar. Não creio que alguém seja violento por querer ser. As maiores violências acontecem por desigualdade, desenraizamento e insegurança na família e mau exemplo na corrupção pública. Outro fator é a impunidade. Nosso país é campeão de impunidade e desigualdade na aplicação da Justiça. Espero que jamais tenha de me defrontar com a violência como vítima e muito menos sendo conivente com ela.
ISTOÉ – Qual é seu time de futebol?
Dom Eusébio – Não respondi antes, mas vou responder agora. Quando eu era adolescente, era meio-campista. E nunca houve no Brasil um melhor do que o Zizinho. Ele era do Bangu e por isso sou banguense de coração, no Rio. Em São Paulo, sou corintiano fanático. Sou fanático mesmo. O Corinthians está com muitos altos e baixos e isso não está me agradando nada.