03/10/2001 - 10:00
Raras obras na história da humanidade nasceram de uma conjunção de influências tão marcantes como A porta do inferno, do genial escultor francês Auguste Rodin (1840-1917). Afinal, o cinzel do artista foi guiado pela leitura empolgada dos versos de A divina comédia, de Dante Alighieri, sem contar que no momento da criação ele também estava embevecido com o poder poético de As flores do mal, de Baudelaire. Não por acaso, Rodin trabalhou febrilmente durante dez anos no imponente alto-relevo – são perto de 6 toneladas concentradas em 5,76 m de altura, 3,8 m de largura e 1,30 m de profundidade –, no qual reproduziu a visão do inferno imaginada por Dante através de quase 120 esculturas de saliências generosas, que recriam cenas de desespero, dor, desencanto e principalmente luxúria, compreensíveis a um homem que acima de tudo amava a anatomia feminina. A versão em gesso da obra iniciada por Rodin em 1880 como uma encomenda da Academia de Belas Artes francesa para o Museu de Arte Decorativa, que nunca existiu, é a grande atração da mostra A porta do inferno, em cartaz a partir do domingo 7, na Pinacoteca do Estado, em São Paulo. Na verdade, o original foi esculpido em barro. A partir dele, fez-se um molde em gesso que está no parisiense Museu d’Orsay. O que veio ao Brasil é um molde de fundição recente emprestado pelo Museu Rodin e que serviu de molde para as três Portas em bronze que estão expostas em Tóquio e Shizuoka, no Japão, e em Seul, na Coréia.
Junto com ela chegam 45 esculturas em bronze, mármore, barro e gesso, 16 inéditas no Brasil, contemplando alguns dos trabalhos mais populares do escultor. Há, por exemplo, uma versão em bronze do famosíssimo O beijo, com 85,5 cm de altura, e mais quatro modelos de referência da mesma obra, em dimensões menores, como um delicado esboço em miniatura da escultura feita em barro cozido. Também não falta o célebre O pensador em bronze, com 71,5 cm de altura, a mesma da mostra de 1995, que em 38 dias levou 185 mil pessoas à Pinacoteca. É bom dizer que são peças originalíssimas, embora Rodin tenha idealizado vários modelos de uma mesma escultura. Os exemplos mais grandiosos permanecem intocados no Museu Rodin. Complementam a exposição 25 desenhos e dez fotografias.
Emoção – Para realizar um evento deste porte, a Pinacoteca gastou relativamente pouco. Foi R$ 1,2 milhão mais os apoios adicionais que quase totalizam o mesmo montante. O custo baixo outra vez deve-se à participação de Jacques Vilain, diretor do Museu Rodin e amigo pessoal de Emanoel Araujo, o diretor da Pinacoteca. Na terça-feira 25, Araujo acompanhou a chegada das peças com uma emoção diferente. Quando a mostra se encerrar em 9 de dezembro, ele deve deixar o cargo após uma festejada e eficientíssima administração que colocou a Pinacoteca na posição do museu mais atuante de São Paulo, talvez do Brasil. “Vou apresentar minha carta de demissão por questões de saúde. Foram dez anos de trabalho obstinado em que mostrei que é possível realizar bons eventos, independentemente de a pessoa ser bem nascida, preta ou pobre.” Sua despedida não será silenciosa. “Afinal, não estou fugindo”, brinca, certo da reprise do sucesso da mostra que será aberta gratuitamente ao público.
A marca da primeira mostra de Rodin em São Paulo só foi superada este ano com a exposição De picasso a Barceló, na mesma Pinacoteca, que reuniu um público de 200 mil pessoas. Na ocasião, o evento Rodin foi decisivo para se iniciar uma transformação radical no prédio e nas intenções da Pinacoteca. Rodin, o retorno, acontece como sempre cercado de cuidados que implicaram até detalhes curiosos. Uma funcionária da empresa responsável pela logística internacional foi a Paris apenas para fotografar e filmar todas as obras do Museu Rodin e depois exibir as fotos e o filme como parte do treinamento das pessoas envolvidas no manuseio das peças no Brasil. Jean Dubos, especialista em fundição, veio da França especialmente para acompanhar a montagem e a abertura das caixas. Ainda que discreto, deu um estalado beijo numa das figuras de A porta tão logo removeu a fina película de papel não ácido que a protegia, certificando-se, feliz, de que nada fora danificado. O momento mais difícil, porém, aconteceu durante o encaixe dos dois conjuntos que compõem A porta do inferno. A parte superior, já dentro da Pinacoteca, foi içada por um guindaste e encaixada na parte inferior, num trabalho que envolveu dezenas de homens na terça-feira 25.
Laboratório – A porta do inferno, segundo Antoinette Romain, conservadora-geral do Museu Rodin, teve influência importante de Michelangelo e se tornou “um laboratório” que marcou toda a trajetória de Rodin, funcionando como uma espécie de guia para suas futuras esculturas. Para Ana Helena Lefévre, coordenadora-geral da exposição, foi através do imponente portal que Rodin experimentou uma técnica conhecida como assemblage, colagem de peças de uma escultura em outra, que se tornaria uma das características do escultor. Para demonstrar os ecos que a obra teve na carreira do artista, o homem nu agachado num rochedo, meditando com os punhos no queixo, nada mais é do que o famoso O pensador, embora naquele contexto estivesse representando Dante Alighieri. Além do poeta italiano, vários personagens de A divina comédia orbitam na escultura monumental. Alguns realmente existiram, como Ugolino della Gherardesca, representado na obra Ugolino e seus filhos. Em fevereiro de 1289, Gherardesca foi encarcerado, sob a acusação de traição, na Torre da Fome, em Pisa, junto com seus dois filhos e dois netos. Com exceção dele próprio, todos morreram de fome. Para sobreviver, comeu a carne dos filhos e netos, sendo assim condenado ao inferno. O suposto comerciante foi retratado com o corpo sobre as crianças, revelando uma expressão animalesca.
Mas a paixão de Rodin pelo movimento e ação do corpo humano reverbera a todo instante. “Ele não dirigia as modelos, deixava-as se mexendo até encontrar um gesto ou uma postura que o agradasse”, conta Antoinette. Nas esculturas independentes vêem-se imagens sensuais e voluptuosas como no mármore Andrômeda. Mais que o erotismo subliminar, no entanto, de acordo com Araujo o escultor tinha a capacidade, tal qual Picasso e Michelangelo, de tocar na alma humana.