19/09/2001 - 10:00
A experiência de mais de 25 anos no acompanhamento dos conflitos internacionais não ajudou a amenizar a perplexidade do cientista político Clóvis Brigagão, 59 anos, ao ver pela televisão as explosões das torres do World Trade Center, em Nova York, e no Pentágono, em Washington. “Vivi por três anos em Nova York e foi difícil acreditar que dois aviões pudessem fazer aquelas torres, símbolos de poder, desabar daquela forma”, diz. Ele não tem dúvida: as imagens são um marco na história da humanidade. “Tive a certeza de que o mundo estava pior.” Na sua avaliação, está inaugurado um novo tipo de conflito mundial. O embate de um Estado contra grupos terroristas, que perdura há muito tempo no caso de Israel e palestinos, ampliou-se e virou um paradigma planetário. Um novo tipo de guerra. Todo o aparato de segurança sobre o qual sempre esteve baseado o poderio mundial americano se mostrou incapaz de enfrentar o terrorismo – o que deverá levar a uma reformulação profunda no sistema. “Mas a questão é: como abolir o terrorismo?”, questiona Brigagão.
Além do confronto, o atentado causou uma ruptura na lógica política internacional, avalia o cientista político, que já foi secretário-geral da Associação Internacional de Pesquisas para a Paz e é diretor-adjunto do Centro de Estudos das Américas. A partir de agora, cria-se um ambiente propício às radicalizações e ao nacionalismo. A esperança na construção de um mundo melhor fica mais frágil. Todo esse estrago, acredita Brigagão, foi motivado pela exacerbação do fundamentalismo e do endurecimento da política externa do governo de George W. Bush. “Os Estados Unidos também têm agido como fundamentalistas. Esse é o governo mais radical que os americanos já tiveram”, afirma. Ao desrespeitar as rodas de negociações internacionais e deixar de cumprir em seu país as determinações acertadas em conferências internacionais, Bush estaria acabando com as possibilidades de pacificação. Por outro lado, o fortalecimento de mecanismos irracionais, como o domínio do Afeganistão pelo Taleban ou o confronto de israelenses e palestinos, se transformam em estopim prestes a queimar. Apesar de tantas más notícias, Brigagão tenta entrever algo de positivo para o mundo. “Esse pode ser o momento propício para se discutir um modelo mais justo. Essa deveria ser a prioridade das grandes potências, do G7 e da ONU”.
Estamos às portas da Terceira Guerra Mundial?
Acho que uma nova guerra se estabeleceu, que é o confronto entre grupos terroristas e o Estado. Não é uma guerra clássica, não é uma guerra de guerrilha ou de longa duração, mas um confronto de ataques tópicos, uma espécie de acupuntura. Enquanto os poderosos americanos são visíveis, os inimigos são invisíveis, utilizam ataques de surpresa que põem o sistema internacional e a convivência humana em perigo. Isso já existe no Oriente Médio, onde Israel enfrenta os palestinos. Não é Estado contra Estado, mas Estado contra o terrorismo. Esse modelo de conflito se tornou um novo fator de desequilíbrio mundial. Pode inclusive estabelecer uma nova espiral armamentista não convencional.
O que levou a esse atentado?
Desde o início do governo de George W. Bush há uma escalada na direção do enfrentamento dos Estados Unidos em relação ao mundo, às instituições internacionais. Toda a agenda dos regimes internacionais, quer na área de desarmamento, de não-proliferação, de direitos humanos, da questão do racismo, tiveram dos Estados Unidos uma postura não só de isolacionismo, mas de unilateralismo. O isolacionismo é quando você se fecha, fica dentro da sua casa e não quer saber de ninguém. O unilateralismo é mais do que isso, impõe ao resto do mundo padrões e valores que são naturais da sua casa. Isso distingue o governo Bill Clinton e os governos democratas do governo Bush, que também tem base fundamentalista. Nós, que também condenamos o fundamentalismo islâmico e o terrorismo, devemos ser críticos em relação a essa postura americana. Na medida em que os Estados Unidos se fecham e impõem suas regras de uma maneira superior, fica difícil para o resto do mundo. Na questão do Oriente Médio, Bill Clinton chegou a colocar em Camp David as duas partes. George W. Bush se fechou.
O sr. classifica também o governo dos Estados Unidos como fundamentalista?
Há fundamentalismo dos judeus, dos islâmicos e também dos Estados Unidos. Este é, com certeza, o governo mais radical que os americanos já tiveram. A ponto de não aceitar que os tratados internacionais tenham validade no seu território. A lei nacional é superior à lei internacional. Como um poder como os Estados Unidos, que tem investimentos, penetração de seus capitais, Coca-Cola e Mc Donalds, pode ser nacionalista? Pregam o internacionalismo, a globalização, e, por outro lado, se fecham? Os americanos são o único poder global que restou e por sua natureza tem de estar acompanhando e até intervindo, se for o caso, nas relações internacionais. A postura de Bush prejudica o equilíbrio de poder. Sozinha, a potência americana não é maior do que as outras juntas, mas o presidente americano não vê o seu país como uma das potências, mas como se só os Estados Unidos importassem. Para esses fundamentalistas do outro lado da cerca, como Bin Laden e os palestinos, é um prato cheio. É uma escalada do fanatismo, da arrogância e da estupidez juntas.
Um atentado como esse poderia acontecer no governo Bill Clinton?
Eu acho mais duvidoso. Clinton tinha um espaço de manobra e flexibilidade muito grandes. Nós vamos sentir falta daquele governo. Não se deu a devida importância a ele. Toda aquela história com a Mônica Lewinsky o prejudicou enormemente. Até mesmo o Bush pai teve mais iniciativas de flexibilização do que este governo. Faltou uma agenda conciliatória, propositiva, em vários pontos. Como no caso do Oriente Médio, por exemplo. Nem o governo Rubin, que era considerado conservador, chegou a esse ponto. Naquela época se constituiu a Autoridade Palestina.
O povo americano apóia a política externa do governo Bush?
A sociedade americana vive muito de consenso, vive muito para o local, para a sua vizinhança. Isso é o que interessa para a classe média, que é a maioria da sociedade americana. A partir deste atentado, a opinião pública deverá acompanhar a posição do presidente, de retaliar e mandar bala contra os terroristas. Esta deverá ser a posição da opinião pública. Há uma outra opinião, daqueles que são contra a política do governo, mas essa corrente não deverá se manifestar neste primeiro momento, quando a comoção nacional é muito grande.
O sr. acha que há algum caminho de conciliação?
Sempre há esses caminhos. Mesmo nas crises mais terríveis, como na Primeira Guerra e na Segunda Guerra, sempre houve perspectivas de uma saída. Apesar do pesar por esse episódio, pode ser o momento oportuno para que os líderes mundiais, o G7, a ONU, os líderes da Europa, como Tony Blair, Lionel Jospin, a própria China e outros, possam se reunir. Podem propor uma conferência para uma agenda para o apaziguamento mundial.
O Brasil pode fazer algo para ajudar nesse processo?
Podemos atuar nas Nações Unidas, onde fazemos parte do Conselho de Segurança. Mas nossa posição geográfica é de poder médio, sem força ou capacidade de orientar decisões internacionais. Vamos no caminho de afirmar uma posição de pacificação, de princípios de autodeterminação. Sempre nos orientamos por esses princípios. Acho que o Brasil poderia ter mais força, mas o Itamaraty sempre seguiu a política de não criar problemas com ninguém. No campo internacional, somos mais atuantes nas questões comerciais do que na política.
Quais as consequências econômicas?
B
Já vínhamos tendo sinais de recessão internacional. Nos Estados Unidos, o nível de desemprego aumentou, a Bolsa está no fundo do poço, o nível de produtividade caiu. Discutia-se se essa recessão seria mais curta ou mais longa. Com esse atentado, esse processo se acelera. Os investidores tenderão a se retrair. Devem pensar: “Nós ajudamos esses países com nosso dinheiro, emprestamos dinheiro através do FMI, e recebemos essa resposta? Vamos parar de ajudar.” Psicologicamente, criou-se uma situação de retração da capacidade dos Estados Unidos de se envolverem em alguma intervenção. Isso prejudica o mundo. Nós recebemos muitos investimentos americanos. Este momento propicia a escalada do nacionalismo político, militar, econômico e diplomático. O clima se radicaliza e a irracionalidade pode tomar conta da política internacional.
O que vai mudar nas relações internacionais?
A lógica do sistema que até então estava em funcionamento se quebrou. Mesmo com a posição dura de George W. Bush, continuamos a ter negociações internacionais. Havia uma perspectiva de um encontro do presidente americano com Yasser Arafat e os líderes europeus tendiam para um consenso. Isso tudo foi rompido. É preciso que o sistema internacional se abra para uma tolerância maior. Deve-se urgentemente equacionar a questão do Oriente Médio, de judeus e palestinos, esse controle do Afeganistão pelo Taleban. Os regimes daquela região são construções medievais, oligarquias monárquicas que não combinam com o nosso tempo.
O sucesso desse atentado pode incentivar novas iniciativas desse tipo?
Durante a guerra fria não existia terrorismo. Naquela época, a corrida armamentista entre União Soviética e Estados Unidos eliminava o terrorismo. Havia a guerrilha, as guerras de libertação nacional, mas não o terrorismo. Esse atentado histórico pode ser realmente a manifestação de uma nova forma de guerra internacional. Acredito que a escalada terrorista tende a aumentar se os grandes poderes, as grandes potências, especificamente os Estados Unidos, não mudarem essa política externa. Até Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinski parecem muito liberais em relação ao governo George W. Bush. Mesmo Colin Powell, que é secretário de Estado e tem posições afirmativas, está apagado. No momento do atentado, ele estava assinando um tratado no Peru, fora da cena central. É preciso favorecer a distensão, a busca da paz, para desestimular o terrorismo. O terrorismo é condenável por todos os sentidos, é a negação da política, a negação do entendimento.
Que papel a ONU pode exercer nesse conflito?
Seria preciso que a ONU se afirmasse mais, está muito fragilizada. Deveria reunir as lideranças para convocar uma reunião de cúpula e exercer uma persuasão, tentar ajudar nessas questões. Mas a ONU tem uma estrutura ambígua, um Conselho de Segurança formado por esses cinco países que detêm o monopólio do poder nuclear, quando o mundo já fugiu a esses parâmetros. Como o Conselho não tem a participação do Japão, da Alemanha, da Índia? Isso diminui muito a representatividade e a força de legitimidade. Os Estados Unidos não contemplam a ONU como fórum de debates internacionais. Outra ambiguidade é o fato de ser formado meio pelo povo, pelas ONGs e pelos Estados. A instituição já tem mais de 50 anos e não conseguiu mediar e criar mecanismos de confiança internacionais.
Os Estados Unidos sempre se pautaram pelos mecanismos de segurança. O que deu errado?
Contra o terrorismo não existe nenhum sistema de segurança de defesa e de controle infalível. Todos são passíveis de sofrer um atentado. Esse episódio expõe essa fragilidade. A partir de agora, eles vão tentar aumentar essa capacidade defensiva. Mas a questão é: como abolir o terrorismo? Isso acontece quando as posições políticas e ideológicas e de intolerância ficam mais radicalizadas.
Em que esse episódio vai mexer com a vida do cidadão comum?
Vai mexer com o sentimento de ser cidadão nesse mundo, quando estamos participando da luta por melhores dias. O atentado tira esse elemento de esperança, diminui a nossa importância como ser humano. Aumenta nosso sentimento de frustração. Depois de passar pela guerra fria, chegamos a isso? A avó da minha empregada falava em fim do mundo. Ou seja, o cataclisma ficou mais próximo. O radicalismo leva à exacerbação de visões catastróficas e de holocausto. Outra coisa: a geração com menos de 20 anos, que não assistiu à guerra fria e viu apenas a sociedade consumista, terá um novo cenário a partir de agora. Essa geração viu o enredo dos videogames e os efeitos especiais dos filmes acontecendo na vida real.