O gelo do oceano Ártico está derretendo. Dito assim, parece título de ficção científica ou delírio de algum visionário do Apocalipse. Mas é pura realidade. A calota polar que recobre o extremo norte da Terra se liquefaz em ritmo acelerado, a olhos vistos. Isso pode ser comprovado por um grande número de efeitos, todos eles originados de uma mesma causa: o aquecimento global.

Em julho, pesquisadores canadenses da Queen’s University, estacionados na Ilha Melville, no Alto Ártico – um dos lugares mais frios do planeta – não acreditaram nos termômetros. Marcavam uma temperatura média nunca antes registrada de 22 graus centígrados. Até então, a marca máxima para a região não passara de 10 graus centígrados. Como se não bastasse, em setembro, o calor prolongado se fazia acompanhar por um dramático derretimento do gelo do oceano Ártico. As altas temperaturas na Ilha Melville causaram catastróficos deslizamentos à medida que o permafrost (camadas de terra congelada) dos flancos das colinas se transformava em lama. “A paisagem se despedaçou, literalmente, diante dos nossos olhos”, declarou o professor Scott Lamoureux, geólogo-chefe da equipe.

Calota diminu
i Ao mesmo tempo, durante todo o verão, outras áreas do Ártico experimentaram temperaturas muito mais altas do que o normal. Particularmente o norte da Sibéria, onde os termômetros marcaram cerca de 5 graus centígrados acima da média. Neste verão, a diminuição da calota ártica devido ao degelo foi dez vezes superior à média anual recente, perfazendo uma área equivalente a quatro Estados de São Paulo. A calota é hoje cerca de 25% menor do que há 30 anos. No dia 28 de agosto, imagens de satélite analisadas pelo National Snow and Ice Data Center (Centro Nacional de Dados sobre o Gelo e a Neve), da Universidade do Colorado, revelaram que a calota polar do Ártico já é 10% menor do que o recorde mínimo anterior, registrado em setembro de 2005. “Se esse não é o alarme vermelho, eu odiaria descobrir qual será”, diz Mark Serreze, pesquisador sênior do Centro. O aquecimento do Ártico virou um processo auto-alimentado que pode fazer com que o oceano Ártico degele completamente nos verões a partir de 2040. Mesmo no inverno, dizem os cientistas, o tamanho da cobertura de gelo será limitado pela capacidade de sua formação numa única estação. Isso significa que a navegação no Ártico, com navios especialmente construídos, será fácil em todas as regiões durante o ano todo.

Entre julho e agosto, um barco a vela americano conseguiu percorrer sem maiores problemas toda a Passagem Noroeste, da Nova Escócia (costa leste do Canadá) ao Alasca, viagem até então só possível aos grandes navios quebra-gelo. Pela primeira vez na história, essa passagem entre o Atlântico e o Pacífico não estava bloqueada por geleiras. “Poderemos ver um oceano Ártico completamente livre do gelo nos verões no tempo em que durar nossas vidas. As implicações disso são muito perturbadoras”, diz Mark Serreze.

Uma primeira perturbação diz respeito ao mapa da Groenlândia. Ele deverá ser redesenhado. Uma nova ilha, com dezenas de quilômetros de extensão, apareceu na costa leste, subitamente separada da terra-mãe por causa do derretimento do enorme lençol de gelo que, desde tempos imemoriais, servia de ponte entre ambas. À nova ilha já foi dado um nome: Warming Island (Ilha do Aquecimento), ou Uunartoq Qeqertoq em inuit, a língua dos esquimós.

Na Groenlândia, essa não é a única transformação provocada pelo aquecimento global e pelo degelo no oceano Ártico. Maior ilha do mundo, sua superfície de 2.166.086 quilômetros quadrados permaneceu sempre coberta por uma espessa e impenetrável capa de gelo. Apenas entre 1% e 2% do território groenlandês estava descoberto, no extremo sul da ilha e em algumas regiões do seu lado oeste.

Novos imigrantes
Hoje, com a progressiva fusão do gelo, quase 20% da superfície da Groenlândia está descoberta. Essa terra revelase fértil, capaz de produzir pastagens para o gado e de suportar uma pequena agricultura sazonal. Capaz, sobretudo, de oferecer à cobiça humana as imensas riquezas escondidas em seu subsolo: ouro, diamantes, minérios e… petróleo. Resultado: a população do país, de poucos milhares de habitantes, chega agora a 60 mil. A cada dia novos imigrantes chegam à capital, Nuuk, em busca de oportunidades.

É um paradoxo: o aquecimento global, que ameaça de destruição imensas áreas do Ártico, torna-se uma bênção para a Groenlândia. Ela é atualmente uma província autônoma da Dinamarca, mas já se comporta como novo país emergente e negocia ativamente com Copenhague a sua completa independência dentro de alguns anos.

Quem vai pagar o preço do degelo do Ártico? Em primeiro lugar, a população nativa dos inuits, outrora chamados esquimós. Há séculos habituados a um estilo de vida estreitamente ligado ao seu meio ambiente inóspito e gelado, eles correm o risco de perder por completo a sua identidade. Em Nuuk, Aqqaluk Lynge, renomado poeta e político inuit, e um dos principais representantes do seu povo no governo groenlandês, lança um alerta: “Muitos animais desapareceram, outros apareceram, os mares e o gelo mudaram, as correntes marítimas se alteraram. Nosso mundo, como o conhecíamos, está chegando ao fim.”

Outras vítimas que o aquecimento global e o degelo marcaram para morrer são os ursos polares, seriamente ameaçados de extinção. Antes centenas de milhares, seu número hoje não supera 25 mil exemplares dispersos na imensidão do Ártico. Esses animais dependem da banquisa (a camada de gelo sobre o mar) para viver. A banquisa é seu território exclusivo de caça. Eles a percorrem em todas as direções, em busca de respiradouros de focas, buracos no gelo através dos quais elas respiram. Mimetizado ao gelo graças à sua pelagem branca, o urso espera pacientemente na borda do respiradouro. Quando a foca aparece para tomar uma bocada de ar, ele se atira sobre ela e a “fisga” com suas garras perigosas. Sem banquisa, não há foca; sem foca, não há urso.

Fauna e flora árticas sofrerão com o degelo. Mas a maior ameaça que o fenômeno acarreta diz respeito ao planeta e a todos nós que vivemos na sua superfície: é a elevação em escala mundial do nível dos mares. Hoje, o volume de água anualmente produzida pelo derretimento dos gelos polares é de cerca de 417 quilômetros cúbicos – igual ao volume do Lago Erie, um dos Grandes Lagos na fronteira do Canadá com os Estados Unidos.

Praias ameaçadas
Já hoje, essa elevação provoca a destruição de aldeias inuit inteiras no Alasca e no extremo norte do Canadá. Mas em todo o mundo regiões costeiras estarão ameaçadas. Países inteiros poderão desaparecer do mapa. É o caso das Ilhas Maldivas e de Tuvalu, país-arquipélago no oceano Pacífico, a nordeste da Austrália (leia reportagem sobre Tuvalu à página 70). A altitude máxima de suas ilhas coralinas é de quatro metros. Hoje, quase todos os dias, durante a maré alta, boa parte das terras de Tuvalu fica submersa. Seus cerca de 11,5 mil habitantes vivem em casas de palafita. Mas já preparam as malas. A qualquer momento serão todos transferidos para a Nova Zelândia, que lhes dará abrigo como imigrantes.

O mais recente Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) estima que o derretimento dos glaciares e das calotas de gelo polares poderá fazer subir o nível dos mares em até 25 centímetros ainda no decorrer deste século. Esse cálculo não inclui a elevação do nível dos mares de vido à expansão térmica da água, o que potencialmente poderia dobrar esse número. Isso poderia causar um avanço médio de 30 metros da linha das praias em todo o mundo. Uma catástrofe, se considerarmos que, hoje, 100 milhões de pessoas vivem exatamente dentro desses limites.

Uma outra ameaça, ainda mais insidiosa, e muito pouco comentada até agora: o chão marinho do Ártico possui jazidas gigantescas de metano, um dos gases causadores do efeito estufa, que, por sua vez, provoca o aquecimento global. O que acontecerá com o derretimento da calota de gelo que recobre esse oceano, e a subseqüente elevação da temperatura das suas águas? Poderá o metano chegar à superfície e passar à atmosfera? Se isso acontecer, a temperatura média em nosso planeta poderá atingir alturas nunca antes imaginadas, com conseqüências que nem sequer podem ser previstas.

O cenário é sem dúvida muito inquietante. Sobretudo quando percebemos que somos nós, com nossas indústrias, nossos automóveis, nossa busca desenfreada de conforto consumista a partir da queima de combustíveis fósseis, os maiores responsáveis pelo aquecimento global. Apesar disso tudo, não falta quem procure tirar o máximo proveito – em termos de lucro financeiro, político e militar – das novas oportunidades trazidas pelo aquecimento.

Novo jogo
O Ártico nunca esteve imune à política. Durante a guerra fria, sob a calota de gelo, submarinos americanos e soviéticos patrulhavam suas águas geladas. Mas agora que o aquecimento global tornou a região mais acessível do que nunca, irrompeu um novo frenesi pelo controle de rotas comerciais no topo do mundo e pelas riquezas que as nações esperam e acreditam estar sob o gelo. Assim como há 150 anos, quando a Rússia e a Inglaterra lutaram pelo controle da Ásia Central, é tentador pensar que – não na estepe ou nas montanhas arenosas, mas no congelado solo do norte – um novo “Grande Jogo” tem início.

A Rússia entrou com força no novo jogo. Numa expedição em 2 de agosto, uma equipe russa desceu ao fundo do mar e fincou uma bandeira russa de titânio diretamente no Pólo Norte. No início de setembro, bombardeiros russos lançaram mísseis cruzadores durante exercícios no Ártico. Alarmados, outros governos também reivindicam o seu quinhão. No dia 10 de agosto, o primeiro-ministro do Canadá, Stephen Halpern, foi até Resolute Bay, vilarejo no território Nunavut, e anunciou planos para a instalação de treinamento militar no Ártico e a reforma de um porto de águas profundas na Passagem Noroeste. Quase ao mesmo tempo, cientistas dinamarqueses saíram em expedição para mapear o mar ao norte da Groenlândia. Para não ficar atrás, a Guarda Costeira dos EUA despachou o quebragelo Healy numa missão similar ao norte do Alasca.

As partidas desse novo jogo deverão ser muito duras. Apesar do ceticismo nada velado de Kalluk, um velho caçador inuit da Groenlândia. Do alto da sua sabedoria multimilenar, ao saber que perto da sua casa uma mineradora de prospecção começaria a perfurar o solo recém-liberto da capa de gelo, ele proclamou: “Não importa o que acontecer, o Sol ainda desaparecerá durante boa parte do ano.”