22/08/2001 - 10:00
Há alguns anos, o Brasil comemora resultados animadores em relação a transplantes. Tanto que é o segundo país no mundo em número de doações, perdendo apenas para os Estados Unidos. E as perspectivas de manter esse ritmo são boas. No primeiro semestre deste ano, já foram feitos 4.216 transplantes contra 3.399 no mesmo período em 2000. “A cada ano cresce em torno de 30% o total de operações”, comemora o nefrologista José Medina Pestana, presidente da Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO). Apesar do quadro positivo, o médico admite que, após a intervenção, pode começar uma nova batalha para a pessoa. Nesse caso, não se trata do problema de driblar a rejeição (um risco comum nessa situação). Existe a chance de o paciente sentir dificuldades de se recolocar no mercado de trabalho. “Geralmente, se há dois candidatos a uma vaga e um é transplantado, a empresa opta por quem não passou pelo processo de doação”, lamenta. Também há histórias de perda de emprego, algumas delas ocorrendo mesmo quando a pessoa ainda estava na fila de transplante.
Dispensa – É o caso do professor Clayton de Campos Pereira, 44 anos, de Sorocaba, interior paulista, desligado do trabalho na rede pública de ensino desde maio do ano passado. Há cerca de seis meses, ele luta na Justiça para recuperar o emprego. Recentemente, a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo aplicou um duro golpe na esperança de Pereira. Ele recebeu há três semanas uma carta do órgão comunicando a disposição de não voltar atrás na decisão de tê-lo dispensado. O professor foi exonerado, de acordo com a secretaria, por não ter dado aulas no início de 2000, período em que esteve de licença médica devido à debilidade física. Isso aconteceu meses antes de Pereira receber um transplante. A história é complexa. Para contá-la, o professor marcou um encontro com ISTOÉ no Hospital das Clínicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele estava internado para se recuperar da terceira rejeição do seu corpo ao fígado novo, que recebeu no Natal do ano passado. “A dor maior não é a do corte da cirurgia, mas o que senti em 6 de maio de 2000”, recorda-se. Foi nessa data que ele leu no Diário Oficial a notícia de sua dispensa. “Mas minha autorização valia até agosto”, garante.
O drama de Pereira começou em setembro de 1999, quando ele procurou auxílio médico devido a um estranho inchaço nas pernas. Após diversos exames e consultas, o professor soube que o fígado estava corroído por causa de uma hepatite C, doença que destrói as células hepáticas. “Na minha adolescência, o mal foi diagnosticado como hepatite B e, por isso, não foi tratado devidamente”, conta. Seu caso foi avaliado durante três meses antes de o transplante ser decidido. Pereira fez seu primeiro pedido de licença da Escola Estadual Monteiro Lobato, em Sorocaba, em setembro. Agiu conforme a Lei nº 500/74, que assegura aos funcionários admitidos sob contrato temporário, como é seu caso, a dispensa por problemas de saúde. Pereira precisou prorrogar a licença mais duas vezes. Quando estava para vencer a última autorização do professor, a escola não forneceu a guia para a realização de um exame médico necessário para ampliar o prazo de afastamento. Inconformado, ele procurou a Diretoria Regional de Ensino de Sorocaba. Em março de 2000, foi orientado a pegar uma guia em outra escola. “Falaram também que eu poderia preencher os meus dados”, afirma.
Justiça – Em abril, Pereira fez o exame e conseguiu prorrogação da licença, com validade até agosto de 2000. Dias depois de passar pelo médico, foi exonerado. O professor recorreu à Associação dos Professores do Estado de São Paulo (Apeoesp). A instituição moveu uma ação na Justiça, mas perdeu. No momento, aguarda-se novo julgamento do caso. “O professor prestou serviço para o governo por nove anos e agora se vê desamparado. Ele foi exonerado quando ainda estava de licença”, contesta a advogada Renata Soares Siqueira, da Apeoesp. A Secretaria Estadual de Educação se defende. “Ele foi mandado embora porque durante o início do ano não teve aula atribuída, perdendo o vínculo com o Estado. Sua última autorização não foi válida. Ele mesmo preencheu a guia e isso é incorreto”, explica Maria Luiza Beiro, diretora do departamento de Recursos Humanos. “O professor agiu assim porque foi orientado pela Diretoria de Ensino”, rebate Renata.
Enquanto o imbróglio não se resolve, Pereira sobrevive com a ajuda de familiares. O professor tenta não perder as esperanças, mas, ao receber a carta da Secretaria de Educação dizendo não abrir mão da decisão, ele se desesperou. “Não tenho mais a quem recorrer”, desabafou. O ex-motorista de ônibus José Vieira, 44 anos, de Campinas, passa por drama parecido. Antes de fazer o transplante de fígado em 1999, a empresa de ônibus em que trabalhava fechou as portas e ele se viu desempregado. Vieira não explica os motivos que o levaram à mesa de operação. Conta apenas que, após a cirurgia, ele não conseguiu arranjar emprego fixo. “No exame médico, abro a blusa, mostro a cicatriz e, em seguida, sou reprovado”, afirma. Atualmente, Vieira está fazendo bicos. Ele faz manutenção elétrica (como consertar chuveiros). Por sorte, um conhecido dele que é proprietário de uma imobiliária resolveu indicar os serviços de Vieira para os clientes que alugam ou compram apartamentos. “Só assim consigo ir levando”, diz.
Vitória – Por causa de histórias como essas estão surgindo iniciativas para contornar o problema. Em 1995, foi fundada a Associação dos Pacientes Transplantados de São Paulo, ligada à Universidade Federal de São Paulo, que atende cerca de 450 pessoas por mês. Não se sabe quantas foram beneficiadas. O sonho do presidente da entidade, Katshhito Miyasaki, 48 anos, é no futuro reivindicar uma portaria que garanta a entrada dos transplantados no mercado de trabalho. “Já recorri a vários políticos e até agora nada”, desabafa Miyasaki, ele próprio um exemplo de que o transplantado pode levar uma vida normal, com rotina de trabalho. Há sete anos, ele teve um problema nos rins, de causa desconhecida, e precisou fazer um transplante. “Minha vida parou”, lembra-se. Aos poucos, ele recuperou as forças e hoje tem um cotidiano agitado. Miyasaki é cirurgião dentista e também atua na área de medicina oriental. Possui um consultório de odontologia e outro especializado em terapia chinesa, no qual aplica técnicas como acupuntura. Além disso, faz mestrado em biologia molecular e ainda encontra tempo para praticar artes marciais. “Depois do transplante, a qualidade de vida melhora. Não dá para entregar os pontos”, ensina.
Para o corretor de câmbio Sidney Moura Nehme, 55 anos, de São Paulo, muitas vezes o que acontece é o paciente ficar fragilizado emocionalmente. “Daí ele não consegue correr atrás de emprego”, afirma Nehme, que passou por um transplante de fígado e rins em 1998. O empresário também é uma exceção entre os pacientes. Após a operação, ele conseguiu voltar às atividades normais. É diretor de uma corretora de câmbio e coordena um trabalho com transplantados. “Faço natação, trabalho e me divirto”, conta. Assim como Miyasaki, Nehme mostra que é possível dar a volta por cima. Mas para isso é necessário muita perseverança.