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As ruas de Díli, destroçadas pela ação dos indonésios em 1999…

Setembro de 1999. Díli, capital do Timor Leste, cheira a queimado e destruição. A visão é alucinante. Quarteirões inteiros de casas brancas incendiadas, devoradas por enormes labaredas negras, saqueadas e destroçadas. Até onde a vista alcança, tudo é desolação. Os restos espatifados da pilhagem generalizada jazem por toda parte, formando pilhas de detritos e sujeira. Nas ruas, só circulam militares armados e blindados de todo tipo em meio a sacos de areia e barreiras de arame farpado. Há cadáveres em decomposição ou carbonizados, abandonados em pleno centro da cidade. Os correspondentes de guerra comentam que nunca tinham visto algo parecido. Em 1975, quando tomaram Phnon Penh (capital do Camboja), os guerrilheiros do Khmer Vermelho esvaziaram a cidade, mas ela ficou intacta. Mesmo em Beirute, durante a guerra civil do Líbano (1975-1991), a destruição ocorreu em setores localizados. Mas um lugar inteiramente queimado como Díli, ninguém se lembra de ter visto. A capital do Timor Leste virou uma cidade-fantasma. Paira um silêncio de morte, só interrompido pela passagem dos tanques, helicópteros voando baixo com metralhadoras apontadas. À noite, só se ouve o uivo dos animais abandonados, que parecem ter voltado a ser selvagens.

Janeiro de 2001. A cidade que o presidente Fernando Henrique Cardoso encontrou já não tem mais nada de fantasma. Díli hoje tem congestionamentos de trânsito, guardas apitando e, como em qualquer lugar do mundo, camelôs e suas iníteis quinquilharias, cambistas, vendedores de cigarros contrabandeados, cartões telefônicos e até flanelinhas. Muitos garotos abandonaram a escola para ganhar uns trocados vendendo jornais. Antes de ser destruída pelas milícias e pelo Exército indonésio, Díli tinha três restaurantes e uma atmosfera sinistra. Hoje, já seriam cerca de 100 e cada dia abre mais um. Todos para os funcionários internacionais, que ganham em dólar americano. Se o cardápio não é lá grande coisa, em compensação os preços nada ficam a dever aos de muitas cidades européias. Há até boates e shows de jazz, no barco atracado para servir de hotel ou em casas restauradas às pressas. Na porta da boate, um aviso: “É proibido entrar armado. Deixe as armas fora.” A maioria dos frequentadores são soldados da ONU. Contam até que houve um show com travestis. Parece que, durante dias, não se falou em outra coisa.

Regina Santos/TVBA
… hoje, apesar da pobreza, existem razões para esperança no futuro

Economias paralelas – Apesar de tudo, a maior parte da cidade continua destruída. Só algumas casas foram restauradas, quase todas para os funcionários internacionais terem onde morar. Os timorenses continuam acampando no quintal da própria casa, em barracos de madeira e zinco ou bambu. Hoje, mais da metade da população vive abaixo da linha de pobreza, recebendo menos de um dólar por dia. O Timor Leste tem duas economias quase sem ligação entre elas: uma para os estrangeiros, cerca de 15 mil pessoas, que importam de tudo; outra para os timorenses. Antônio Almeida Serra, professor de economia da Universidade Técnica de Lisboa, explica como os timorenses sobrevivem: “Graças ao jeitinho, uma horta aqui, um galinheiro ali, e à solidariedade familiar, que sempre foi extremamente forte. A população hoje vive ainda pior que durante o período da dominação indonésia. Mas isso é natural e todos sabem que esse é o preço a pagar para ser livre”, avalia Serra. O embaixador Sérgio Vieira de Mello, diplomata brasileiro que administra o Timor Leste em nome da ONU, também relativiza a gravidade da situação timorense. “Se o desemprego aqui fosse de 80%, como dizem os jornalistas, o palácio do governo já teria sido incendiado e saqueado”, garante. “É claro que há desemprego nas áreas urbanas, mas não de 80%. Nas áreas rurais nunca houve desemprego, tanto que vamos atingir 75% da produção normal”, pondera Mello. O brasileiro sabe que recebeu uma missão quase impossível. “É uma situação sui generis. É a primeira vez que a ONU administra um território no sentido pleno da palavra, com autoridade total e absoluta no executivo, legislativo e judiciário. É muita responsabilidade e, às vezes, um pesadelo. Junto com a missão, ninguém me deu um manual. Nós vamos improvisando, não tem outro jeito”, admite Mello.

Primeiras dissensões – 22 de setembro de 1999, 10 horas da manhã, sob um sol de rachar. Impossível saber a temperatura, não há um termômetro nessa cidade destruída. Centenas de militares armados tomam conta da praça do palácio do governador, coração e símbolo do poder em Díli. Atiradores de elite estão postados no teto. Uma multidão colorida canta hinos da resistência e forma rodas dançando abraçada. Quando Xanana Gusmão finalmente aparece, protegido por soldados australianos e brasileiros, é o delírio total. A ovação não acaba nunca. O povo chora, Xanana chora, não consegue falar. Em seu primeiro discurso público, feito em tetum (língua local), Xanana prega a reconciliação entre timorenses e a Indonésia. O homem mais popular do país, o ídolo absoluto da resistência timorense, nunca tinha sido visto em público até então. Xanana passou os últimos 24 anos na clandestinidade ou na prisão. Naquele momento, ele deixou de ser um retrato na parede, um ícone revolucionário com boné e estrela na testa estampado nas camisetas. Saiu da história para entrar na vida. Logo, os outros dois integrantes da “Santíssima Trindade” da resistência timorense – os prêmios Nobel da Paz José Ramos-Horta e o bispo de Díli, dom Ximenes Belo – se reencontrariam em Díli.

Mas a “Trindade” já não demonstra tanta união quanto nos tempos da ocupação indonésia. Xanana, por exemplo, tomou distância do bispo Belo, antigo apoiador da guerrilha. O prelado se revelou um digno representante do conservadorismo ultramontano quando o assunto é a moral. Amigas timorenses, com responsabilidades políticas inclusive, contam que ele implica quando elas aparecem de saia “curta”, blusa sem mangas e até de calça comprida ou maquiagem. “Católico não tem querer”, sentencia o bispo, dando a entender que as fiéis devem obediência à Igreja e a seus clérigos. Monsenhor Belo também arrumou confusão com as organizações humanitárias internacionais e as feministas timorenses ao se opor terminantemente a toda e qualquer campanha de controle da natalidade e distribuição de preservativos, inclusive como prevenção contra a Aids.

Além dessas firulas internas, a liderança timorense vive também num braço-de-ferro com a ONU para que a passagem de poderes se faça o mais rapidamente possível. Xanana Gusmão, que mal terminou o ginásio e passou quase toda a vida na selva, deu lições de habilidade política e um verdadeiro baile nos diplomatas mais experientes. A missão da ONU no Timor Leste, a Untaet, é um verdadeiro saco de gatos, com gente vinda de todo o mundo, atraída pelos altos salários, que ignora tudo da realidade do país. Os que vieram por idealismo, os velhos amigos do Timor, logo se decepcionaram. Um dos mais altos postos da Untaet, Jarat Chopra, se demitiu depois de quatro meses acusando os burocratas da ONU de “sacrificar o Timor em benefício de suas carreiras, numa negligência criminosa”. Ele acusa a ONU de permitir “a tomada de decisões autocráticas por um punhado de carreiristas, coisa que ameaça a democracia do Timor. Os timorenses devem fazer de tudo para se livrar da ONU o mais rápido possível”, aconselha. O constitucionalista Pedro Bacelar, que só aguentou dois meses, fala em “neocolonialismo” e resume a “mistura de Indiana Jones na selva e politicamente correto que caracteriza o pessoal da ONU”.

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Dom Ximenes Belo, um dos heróis da resistência, revela-se conservador em assuntos de moralidade

Xanana e os ministros do gabinete de transição vivem ameaçando se demitir, até para conseguir que a ONU preste contas de como o dinheiro dos doadores internacionais está sendo gasto. Até agora, tanto Xanana quanto Ramos-Horta conseguiram se manter acima dos partidos, como árbitros de rivalidades políticas ou pessoais. Mas, quando saírem candidatos, essa contemporização vai acabar. Por isso, Xanana recusa a idéia de ser presidente, para perplexidade geral.

A independência deste pequeno país, que viveu até agora colonizado (por Portugal) ou sob as botas de invasores (a Indonésia), está marcada para novembro próximo. O nome do novo país será provavelmente Timor Lorosae (aurora, em língua nativa). Depois das horríveis dores do parto, os timorenses têm todos os motivos para esperar que o nome de sua futura nação não seja apenas mais uma esperança vã.

Adeus às armas
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Falintil Vitoriosos, mesmo sem apoio e sem recursos

Um exército cor de jambo, no qual a média de altura mal chega a 1,60m. Cabelos longos e boinas, o look oscila entre Che Guevara e Bob Marley, uniforme desparelhado, medalhas da Virgem no pescoço. Isolados, com fome, morrendo mais de malária do que de tiros, esse punhado de homens lutou durante mais de duas décadas contra um dos maiores e mais bem armados Exércitos da Ásia, o indonésio. O mais incrível é que venceram. O Timor Leste foi o Vietnã da Indonésia. Mas agora as Falintil (Forças Armadas de Libertação do Timor Leste, o braço armado do movimento de libertação) vão ser oficialmente dissolvidas. A data prevista é o próximo dia 31. Apenas metade dos antigos guerrilheiros vai fazer parte das Forças de Defesa do Timor Lorosae, o futuro exército regular. O chefe será o comandante Taur Matan Ruak, que dirige a Falintil desde a prisão de Xanana Gusmão, em 1991.

A história das Falintil é única no mundo e quase inacreditável. Desde 1975, quando a Indonésia invadiu o Timor Leste, um punhado de homens não só encarnou como foi praticamente a única forma de resistência do país ao ocupante. O Exército indonésio chegou a ter 50 mil soldados no território, nunca menos de 30 mil, armados com o equipamento mais moderno, inclusive toneladas de napalm. Mesmo assim, só entre 1975 e 1979, as Falintil provocaram 20 mil baixas entre os soldados indonésios. Nos últimos anos, a guerrilha timorense estava reduzida a apenas 450 homens. As armas e os uniformes eram capturados do inimigo. “Até as cuecas que usávamos eram tiradas dos indonésios”, conta o comandante Falur Rate Laek da região III, atualmente oficial de ligação entre as Falintil e a ONU. Falur Rate Laek significa cadáver sem sepultura. O verdadeiro nome, Domingos Raul, o comandante mal lembra. “Nós somos a única guerrilha no mundo que nunca recebeu um tostão, uma bala, um grão de arroz, nem apoio diplomático de país nenhum.” Mesmo no imenso tabuleiro de xadrez da guerra fria, os peões timorenses nunca interessaram a ninguém. Nenhum país queria se indispor com a Indonésia.

Quando as milícias e o Exército indonésio começaram a incendiar o país, a matar a população a machadadas, as Falintil receberam ordens de Xanana Gusmão, ainda na prisão, para não intervir. “Foi o mais difícil de todos esses anos de sofrimento”, conta o comandante Falur, quase em lágrimas. “Como segurar esses homens que viam seus irmãos sendo cortados em pedaços quando nós mesmos queríamos ir lá e acabar com aquilo? Mas nós obedecemos”, diz. Xanana queria evitar uma guerra civil e permitir a intervenção militar internacional, o que acabou ocorrendo em 1999.

Desde então, as Falintil estão acantonadas em Aileu, próxima a Díli. Por causa do acordo de desarmamento da guerrilha assinado entre a ONU e a Indonésia, eles praticamente não podem sair de lá, nem andar armados. Esses combatentes estavam quase passando fome, vivendo da ajuda humanitária, sem fazer nada o dia inteiro. Enquanto isso, nas ruas e estradas patrulham tropas internacionais, a maioria soldados de 20 anos que nunca deram um tiro numa guerra e desconhecem o terreno. Os veteranos das Falintil têm mais anos de guerrilha do que a maior parte dos soldados estrangeiros.