Nos 14 anos em que ocupou o Palácio de Miraflores, em Caracas, Hugo Chávez, morto em 2013, construiu uma imagem de líder messiânico, amigo dos pobres e inimigo dos imperialistas do Ocidente. Sob Chávez, a Venezuela melhorou significativamente seus indicadores sociais (a mortalidade infantil e os índices de pobreza despencaram), mas os amplos gastos estatais, subsidiados pelo dinheiro que jorrava do petróleo, e a corrupção sem controle corroeram a economia do país. Apesar do legado dúbio, o chavismo ganhou sobrevida com a eleição de seu sucessor, Nicolás Maduro. Mas agora, enfrentando a mais grave crise econômica da década, a Venezuela questiona se o modelo construído pelo caudilho se esgotou.

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ORDEM E CAOS
O presidente Nicolás Maduro desfila em parada militar, enquanto o povo tumultua
a fila de um supermercado para comprar frango, em Caracas. À medida que
a escassez de produtos se agrava, a popularidade de Maduro cai

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As filas nos supermercados transformaram a procura por produtos básicos como leite, arroz, fraldas e papel higiênico numa batalha cotidiana. O desabastecimento se agravou nas últimas semanas, quando soldados da Guarda Nacional tiveram que ser deslocados para evitar saques, tumultos e contrabandos. Na raiz da escassez de bens e do colapso financeiro estão os subsídios para a gasolina e a energia elétrica, o controle cambial e a política de congelamento de preços, que, em muitos casos, faz com que a importação fique mais barata que a produção local. Além disso, o preço do barril do petróleo caiu praticamente pela metade no ano passado. Dona das maiores reservas de petróleo no mundo, a Venezuela depende do combustível para a entrada de 96% de suas divisas. Isso reduziu sua capacidade de investimento e de pagar a dívida pública. Como resultado, a inflação está acima de 60% ao ano e a economia deve encolher 7% em 2015, de acordo com o Fundo Monetário Internacional.

“Numa crise normal, as pessoas não têm dinheiro suficiente para comprar o que necessitam e os produtos ficam na prateleira”, disse à ISTOÉ David Smilde, especialista em Venezuela da ONG americana Wola, que promove estudos sobre América Latina, e autor de três livros sobre o chavismo. “Na atual crise venezuelana, até mesmo os pobres podem pagar pelos produtos básicos, mas eles são difíceis de obter, requerem viagens diárias e horas na fila.” Segundo Smilde, o país sofre com o desabastecimento há muito tempo, mas as classes mais baixas eram pacientes, porque, com o controle de preços, tinham acesso a produtos que antes não podiam comprar. Já havia, por exemplo, registros de escassez em 2013, quando o preço do barril do petróleo ainda estava acima de US$ 100. Mas agora a situação é tão crítica que a paciência acabou e isso tem se refletido nos índices de popularidade do governo. Em janeiro, a aprovação de Maduro chegou a seu pior nível: 22%. O presidente culpa os empresários, que estariam num complô com a oposição para desestabilizar o governo. Desde o ano passado, o governo prendeu mais de 20 executivos do varejo.

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A conspiração também envolveria o governo em denúncias como a que acusa Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional, de ser narcotraficante. Na semana passada, foi revelada a participação de um ex-segurança de Chávez, promovido ao alto escalão do governo, num escândalo internacional de fraude fiscal envolvendo o banco HSBC na Suíça. Mesmo num cenário profícuo para a oposição, ela segue disforme, sem apresentar um projeto alternativo de poder. “Se não nasce uma força que representa a esperança, como foi o chavismo, o status quo pode manter-se durante muito tempo”, afirma o analista político Dimitris Pantoulas. “O chavismo, enquanto proposta popular e nacionalista, ainda é uma força política importante. Enquanto modelo de petro-Estado, ele se esgotou.” No segundo semestre, haverá eleições legislativas e os socialistas podem perder o controle do Parlamento. “Chávez ressuscitou a utopia de que éramos um país rico”, afirma Alberto Barrera Tyszka, coautor de uma biografia do ex-presidente. “Hoje suas promessas estão sendo desfeitas.”

Fotos: AFP PHOTO/PRESIDENCIA; JUAN BARRETO/AFP PHOTO