O fazendeiro e pecuarista Roberto Rodrigues era então apenas um líder rural entusiasmado com a idéia do cooperativismo quando resolveu ir em 1986 a uma agência dos Correios e enviar num formulário-padrão elaborado pelo Centro de Processamento de Dados do Senado (Prodasen) sugestões de próprio punho para a nova Constituição brasileira, que começaria a ser votada no ano seguinte. Josefa Aparecida Brilhante tinha 20 anos quando expressou seus sonhos em forma de um poema endereçado ao Congresso Nacional. “É um desejo de um mundo melhor”, sugeria ela na carta. O seringalista Chico Mendes também expressou seus ideais: “Como forma de preservação da floresta, serão criadas na Amazônia brasileira reservas extrativistas.” O funcionário público Dimas Donisete Rocha tratou de defender a sua categoria: “Gostaria de ver uma política mais justa para o servidor público”, escreveu Dimas. Hoje, duas décadas após a incorporação de algumas das idéias do povo brasileiro na Constituição, alguns viram seus sonhos se concretizarem, outros não.

Roberto Rodrigues tornou-se ministro da Agricultura no início do governo Lula e pôde contribuir para a incrementação do cooperativismo como instrumento de política agrícola. Josefa Aparecida, faxineira no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campo Redondo (RN), trocou a esperança pela resignação: “A maior aventura do pobre é sobreviver”, diz ela. Chico Mendes foi assassinado em nome de seus ideais, mas uma de suas companheiras de luta, Marina Silva, é hoje ministra do Meio Ambiente. Dimas Donisete Rocha continuou a superar todos os obstáculos e dificuldades que a vida lhe impôs – como trabalhar de servente na juventude e morar em barracos de madeira, na periferia de Brasília –, fez três cursos superiores e hoje tem pós-graduação em direito constitucional. “Fico emocionado por ter encaminhado minha contribuição”, diz Dimas. “Eu me identifico com a parte dos direitos sociais da Constituição.”

Ao todo, o Congresso Nacional distribuiu cinco milhões de formulários pelo Correio em 1986 e 1987. A resposta não teve a repercussão que se esperava naqueles anos, mas 72.719 brasileiros acreditaram na proposta de participação popular e enviaram suas sugestões para a Assembléia Nacional Constituinte. Os formulários preenchidos construíram o sistema de apoio informático à Constituinte, o Saic. O levantamento mais apurado deste acervo do Saic começou a ser feito em 1990, por iniciativa do brasilianista francês Stéphane Monclaire, que produziu com sua equipe o livro A Constituição desejada. O livro e todas as cartas, apesar de serem alguns dos maiores bancos de dados para medir a pulsação política da época, eram uma espécie de arquivo morto, até que a TV Senado resgatou as histórias de algumas dezenas de pessoas que enviaram suas contribuições para mudar a Constituição na produção especial Cartas ao país dos sonhos, que tem sido exibida no canal de tv pública.

A documentarista e funcionária do Senado Renata de Paula mergulhou fundo na pesquisa sobre o que queriam os brasileiros naquela época, a partir da leitura de milhares de cartas e de todas as pesquisas do brasilianista francês. “Muitas coisas foram incorporadas, as pessoas pediam saúde, educação e mais qualidade de vida”, diz ela. “Pediam ainda reforma agrária, fim da inflação e direitos indígenas. Não é à toa que a Constituição é chamada de ‘Constituição Cidadã’.” A idéia de criação de um Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, estava na carta da enfermeira Francisca Selene de Oliveira Claros, do Amazonas. Hoje, graças ao SUS, somente Brasil e Canadá têm um sistema universal de atendimento à saúde. Houve também as “sugestões não pertinentes”, como classifica Renata. Nessas listas havia pedidos de bicicletas, passagens, viagens e até emissão de passaportes. A participação popular não é, no entanto, o único elemento que pode ser medido pelas cartas. Até porque, como registra Stéphane Monclaire em seu livro, a contribuição popular foi meio relegada pela maioria dos constituintes à época. Um dos poucos constituintes que recorreram às cartas para apresentar sugestões, informa o pesquisador, foi o então senador José Inácio Ferreira, do Espírito Santo. O diretor de Documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antonio Augusto de Queiroz, concorda: “As sugestões, seguramente, não tiveram o devido tratamento.”

"Como forma de preservação da floresta, serão criadas na Amazônia brasileira reservas extrativistas"
Sugestão do seringalista Chico Mendes

O acervo de cartas, porém, é um importante mostruário de um tempo em que a esperança alimentava o coração de um povo recém-saído da ditadura e entusiasmado com a chance de reconstruir seu país. Os pontos de vista e as teses defendidas são as mais variadas. Dom Erwin Krautler, bispo do Xingu, cobrava dos constituintes a proteção e a garantia do espaço territorial dos povos indígenas, “entendido o espaço como solo e subsolo”. Dom Erwin é uma das principais personalidades do País na luta pelo aumento do número de homologações de terras indígenas. Entre os que enviaram sugestões, muitos estão contrariados com os rumos adotados pelo País. Sérgio Ruzzi, 50 anos, era funcionário da Eletropaulo e fazia cadastros nas favelas durante a Constituinte. Ele sugeriu que as favelas fossem retiradas dos grandes centros urbanos. Sua idéia era que os favelados fossem treinados na agricultura. “Hoje as favelas explodiram”, lamenta Ruzzi. “Sou desanimado com o Brasil. Já se passaram 20 anos e a esperança nunca vem. Não levaram minha sugestão em conta.” Hoje desempregado, ele cuida da saúde da mãe. Ele acha que a educação melhorou um pouco. “Não me identifiquei com esta Constituição, saiu diferente”, reclama Ruzzi. “Além do mais, o povo ainda vota em quem dá camiseta e comida.” Outra que não viu seus sonhos concretizados é a comissária de bordo aposentada Suely Castro Rojas, 59 anos. Ela sugeriu na Constituinte a legalização do aborto, a emancipação de menores de 16 anos e a pena de morte para crimes capitais. “Ninguém fala no aborto porque é um tema sensível, atinge a Igreja”, diz Suely. “Sobre pena de morte, não tenho mais certeza, pois a Justiça é falha e pode penalizar inocentes.”

Alguns autores de sugestões aos constituintes viraram vítimas das suas próprias idéias. É o caso de Fabiano Luiz Andrade. Ele era bóiafria na época da Assembléia Nacional Constituinte. Enviou a carta ao Congresso: “Peço reforma agrária urgente em nosso município”, escreveu. “Existem milhares de alqueires de terras improdutivas.” Fabiano conseguiu no ano 2000 comprar sua gleba em São Pedro do Turvo, município paulista, por uma das linhas de crédito da reforma agrária, o Banco da Terra. Hoje, Fabiano deve R$ 40 mil ao banco e não consegue parar a sua dívida. Mesmo assim, ele acha que o País melhorou. “Naquele tempo a gente morava em fazenda e fazenda não pagava imposto. Aqui a gente paga imposto.” Fabiano é um agricultor que fica feliz em pagar impostos, por acreditar que este dinheiro será revertido em educação e saúde. Há aqueles que nunca perdem a esperança.

"Pediam reforma agrária, fim da inflação. Não é à toa que a Constituição é chamada Cidadã"
Renata de Paula, documentarista do Senado