Para algumas tribos de ilhas do Oceano Pacífico, os tubarões têm poderes mágicos. Encarnam maus espíritos que exibem sua força “sacrificando” homens. Não são mesmo animais que inspirem simpatia. A face sem expressão, os olhos arregalados, os ataques sorrateiros e silenciosos não denotam compaixão ou razão. A agressividade está concentrada na mandíbula. Nela há várias fileiras de dentes que estão sempre nascendo. Quando os da frente caem, os de trás lentamente tomam seu lugar. Durante a sua vida – de 20 a 70 anos –, a artilharia pode chegar a 12 mil dentes. Uma mordida equivale a um peso de duas toneladas desabando sobre a pele. A boca abre-se tanto e com tanta avidez que os músculos da cabeça se deformam, os olhos reviram, deixando à mostra apenas a parte branca.

O risco de esses monstros primitivos e os seres humanos se encontrarem aumentou. Das 2.159 mordidas registradas desde 1580 pelo Arquivo Internacional de Ataques de Tubarões – coordenado pelo Museu de História Natural da Flórida –, 536 ocorreram na década de 90. De 1998 a 2000, os acidentes saltaram de 54 para 79. O último aconteceu em julho passado, na Flórida, EUA. O menino Jessie, oito anos, foi mordido no braço e no fêmur por um tubarão Cabeça chata, mas sobreviveu.

A explicação para esse fenômeno é de arrepiar. Na falta de peixe, os tubarões estão degustando gente. Um estudo publicado na revista americana Science revela que a pesca excessiva destruiu a delicada cadeia alimentar marinha e extinguiu milhares de espécies. Ao poluir o mar de lixo e deóleo e ocupar desordenadamente o litoral, o ser humano aumenta o estrago. “Os homens não são presa natural de tubarões, mas, ao depauperar a fauna marinha, eles terão que enfrentar animais com dificuldade de arranjar alimento”, afirma Otto Bismarck Gadig, biólogo da Universidade Santa Cecília, em Santos, e representante no Brasil do Arquivo Internacional.

OS ATAQUES
De 1580 a 2000
2.159acidentes no mundo
257fatais
99no Brasil
Estados brasileiros recordistas
40Pernambuco
12Maranhão
12São Paulo
9Rio de Janeiro

 

A primeira investida é sempre exploratória. O tubarão Branco solta rapidamente a presa ao perceber que cravou os dentes em algo que não integra o seu cardápio. Já o Tigre e o Cabeça chata fazem a linha “o que não mata engorda”. Mesmo que a iguaria não seja apetitosa, consumam a mordida e arrancam pedaços. O litoral de Pernambuco abriga muitas dessas espécies e é o recordista em ataques no Brasil. Só na cidade de Recife, foram 33 nos últimos nove anos, 11 fatais. Os acidentes são o impacto ecológico mais aterrador da construção do porto de Suape, no sul da cidade, em 1992. Áreas de manguezal e aterros foram dinamitados e o curso de dois rios, desviado. O Departamento de Pesca da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) constatou que, para parir os filhotes, as fêmeas do tubarão Cabeça chata tiveram que se deslocar para o estuário mais próximo. E ele desemboca exatamente nas praias da região metropolitana, onde ocorreram os ataques. “A falta de peixe não é o motivo mais grave dos ataques. Há uma combinação de fatores e o lixo lançado ao mar pelos navios também atrai os tubarões para a praia”, observa o biólogo da UFRPE Fábio Hazin. Desde 1995, o surfe está proibido nas praias metropolitanas do Recife.

Jogando com o pavor ancestral que o ser humano tem de ser engolido por um predador, o caçador de tubarões australiano Vic Hislop encabeça uma campanha a favor do extermínio do bicho. Cientistas da África do Sul criaram até uma flecha, chamada pod, capaz de atordoar o animal com choques elétricos e dar tempo à vítima de escapar.

Os biólogos afirmam que o tubarão está longe de se tornar um problema de saúde pública. A julgar pelo número de ataques, é mais provável que alguém seja mordido por um pit bull na praia. Vertebrados mais antigos do planeta, com 400 milhões de anos, os tubarões são predadores de topo da cadeia alimentar. Por comerem quase todos os animais marinhos, eles são vitais ao equilíbrio do oceano. E também estão ameaçados. Das 450 espécies existentes no mundo, 20 correm o risco de desaparecer. A pesca predatória na ilha australiana da Tasmânia fez os polvos, um dos alimentos preferidos dos tubarões, se multiplicarem. Em excesso, eles dizimaram suas presas naturais, as lagostas. Um exemplo do efeito dominó que a ruptura do equilíbrio ambiental pode provocar.

Sexto sentido – Explorada à exaustão pela ficção, a índole maligna dessas feras ofusca características fantásticas. O sistema sensorial de um tubarão não encontra rival no reino animal. O cérebro é coberto por uma rede de poros recheada de uma substância gelatinosa, que detecta o campo elétrico gerado pela respiração dos peixes. Canais semicirculares, no interior do ouvido, captam sons a uma distância de até 600 metros. Milhares de outros poros ao longo dos flancos e da cabeça enviam às células nervosas as vibrações do ambiente. Seu desempenho mais impressionante é o sexual. O macho domina a fêmea, enchendo-a de mordiscadas. Enquanto copulam – durante o nado –, ele morde mais forte para prender-se ao corpo dela. Cada macho tem dois pênis, bastões cartilaginosos sempre eretos chamados de clasper. São usados alternadamente ou juntos e chegam a 35 cm de comprimento. Não é de pasmar que uma cópula se estenda por mais de duas horas. As gestações acontecem a cada um ou dois anos e duram de sete a 22 meses.

O que faz o bicho ser temido – o fato de seu cérebro ser voltado para desenvolver estratégias de caça – é também o que o torna mais apreciável. “O tubarão é puro. Simplesmente cumpre sua função biológica de predador”, avalia Gadig. O fascínio também pode nascer em suas vítimas. O carioca João Pedro Portinari, 26 anos, apaixonou-se por tubarões depois de ter sido “isca” de um Branco, há quatro anos, no balneário fluminense de Búzios. Portinari velejava numa prancha de windsurf a dez quilômetros da praia, perdeu o equilíbrio e caiu. Antes de voltar à superfície, sentiu um puxão na perna esquerda – tão forte que anestesiou qualquer possibilidade de dor. A água ficou vermelha. “Achei que ia morrer ali. Foi desesperador”, lembra. O peixe deu uma dentada e foi embora, deixando uma cicatriz de 250 pontos na batata da perna de Portinari. Hoje, o rapaz gosta de viajar para as ilhas do Pacífico para filmar os melhores ângulos do bicho. “Estou vivo porque é o tubarão que manda”, diz. E repete cheio de brio sua aventura a quem se interessar. “Ser mordido por tubarão dá o maior ibope.”