Reuters
O juiz Cavallo considerou “nulas” leis pró-torturadores

Em 1971, o torneiro mecânico chileno José Liborio Poblete Roa, que perdera as duas pernas num acidente automobilístico anos antes, organizou em Buenos Aires um centro de reabilitação para deficientes físicos denominado Frente de Deficientes Peronistas. Esse simples ato lhe valeria o ódio dos militares antiperonistas que tomaram o poder na Argentina em março de 1976, desencadeando uma selvagem repressão contra opositores políticos. Em novembro de 1978, Poblete, sua mulher, a argentina Gertrudis María Hlacizik, e a filha deles, Cláudia Victoria, de apenas oito meses, foram presos e levados ao centro de detenção clandestino El Olimpo, sob jurisdição do I Corpo do Exército, então comandado pelo sanguinário general Carlos Suárez Mason. Na prisão, os valentes militares confiscaram a cadeira de rodas de Poblete, forçando-o “a caminhar sobre as mãos para ir ao banheiro”, segundo relato de testemunhas. Também deficiente física, Gertrudis foi arrastada, nua, pelos cabelos, nos corredores do cárcere, enquanto apanhava. Depois de sofrer terríveis torturas com choques elétricos nos órgãos genitais, o casal foi assassinado. O bebê deles foi sequestrado pelo então tenente-coronel Ceferino Landa, que registrou a menina como sua filha. Poblete e Gertrudis passaram a integrar a lista dos cerca de 30 mil “desaparecidos” durante a ditadura militar de 1976 a 1983.

Lioacono/Sipa Press
25 anos depois de mergulhar a Argentina nas trevas, Videla (centro) e Massera (à esq.) ainda assombram o país

Jurisprudência – Os responsáveis diretos pelo suplício do casal, os policiais Julio Simón e Juan Antonio del Cerro, foram dois dos 1.180 repressores beneficiados pelas leis do Ponto Final e Obediência Devida, aprovadas entre 1986 e 1987 durante o governo do presidente Raúl Alfonsín. Arrancadas à ponta de baionetas, essas leis limitaram os processos contra militares e livraram os oficiais subalternos da responsabilidade pelos crimes cometidos durante a ditadura. Na terça-feira 6, o juiz federal Gabriel Cavallo, 42 anos, decidiu que aquelas leis são “inválidas, inconstitucionais e nulas”. O juiz, que já processava os dois policiais pelo sequestro da menina – crime não previsto naquela legislação –, decidiu anular as duas leis por entender que os acusados também deveriam ser julgados pelo assassinato dos pais de Cláudia. A decisão de Cavallo foi uma resposta a uma demanda do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), presidida pelo jornalista e escritor Horacio Verbitsky. “É um passo muito importante para acabar com a impunidade na Argentina”, declarou Verbitsky a ISTOÉ. “Aqui se generalizou o sentimento de impunidade, algo que não se limita a um momento ou a um setor da sociedade. É uma mancha venenosa que se espalha por todo o país até encobri-lo”, diz Verbitsky, autor do livro O vôo, no qual um ex-capitão relata como presos políticos eram jogados ao mar de dentro de helicópteros. Embora restrito ao caso Poblete, esse veredicto pode criar jurisprudência para a abertura de processos contra militares, mas ele ainda terá de ser confirmado pela Corte Suprema. Um dos afetados seria o atual comandante do Exército, general Ricardo Brinzoni, suspeito de mandar fuzilar, em dezembro de 1976, 22 oposicionistas detidos