No dia 18 de março de 1871, os cidadãos de Paris se insurgiram contra a decisão do governo de Louis Adolphe Thiers de desarmar a Guarda Nacional depois da derrota da França para a Prússia. Os insurretos elegeram então uma assembléia para governar a cidade, a Comuna de Paris, formada majoritariamente por trabalhadores e pela classe média. A euforia duraria apenas dois meses; em maio, tropas do governo central retomaram a capital e massacraram 25 mil communards, entre homens, mulheres e crianças, num episódio que passaria à história como “semana sangrenta”. Desde então, a Cidade Luz passou a ser considerada a mais burguesa da França e tem sido administrada pela direita, mesmo depois do estabelecimento de eleições diretas para prefeito, em 1977. No domingo 18, exatos 130 anos depois do início da Comuna, a esquerda voltou ao poder em Paris, desta vez pelo voto. O socialista Bertrand Delanoë, apoiado por uma frente formada por socialistas, comunistas, verdes e radicais, conquistou a prefeitura parisiense derrotando os candidatos da direita, o neogaullista Philippe Séguin e o atual prefeito, Jean Tiberi. A esquerda também arrebataria outro troféu dos conservadores: Lyon, a segunda cidade da França. Mas a “maré rosa” – a ampla vitória da esquerda nas eleições municipais anunciada pelas pesquisas – não se concretizou. No resto do país, prevaleceu a “vaga azul” conservadora dos partidos de direita, Reunião pela República (RPR, neogaullista), União pela Democracia Francesa (UDF) e Democracia Liberal. O resultado é que nenhum dos principais candidatos à Presidência nas eleições de 2002 – o presidente neogaullista Jacques Chirac e o primeiro-ministro socialista Lionel Jospin – pôde cantar vitória.

Fotos: AP

O presidente Chirac e o premiê Jospin acirram a briga pelo Elysée

A perda de Paris foi uma derrota pessoal de Chirac, que foi prefeito da capital durante 18 anos (1977 a 1995) e fez do Hôtel de Ville (sede da Prefeitura de Paris) a base para sua carreira política e um trampolim para chegar ao Elysée (palácio presidencial). Seu sucessor e antigo protégé, Jean Tiberi, envolvido em inúmeros escândalos de corrupção, acabou expulso do RPR, que foi buscar o ultranacionalista Phillipe Séguin para tentar salvar a pátria. Mas a direita neogaullista não conseguiu se unir e perdeu a principal jóia da coroa. O RPR agora corre o risco de implosão em nível nacional. Já o premiê Lionel Jospin, cujo governo conseguiu retomar o crescimento econômico e reduzir os níveis de desemprego no país, não empolgou a maioria do eleitorado francês, que se pautou mais por temas municipais do que nacionais. Os socialistas perderam, entre outras cidades, Toulouse, base eleitoral de Jospin, Estrasburgo, dirigida pela ex-ministra da Cultura Catherine Trautmann, e Blois, governada pelo ministro da Cultura, Jack Lang, talvez um dos mais populares ministros da França. As eleições também enfraqueceram ainda mais o vetusto Partido Comunista Francês (PCF), que já foi o segundo partido da França e hoje, com pouco mais de 5% dos votos, é apenas um dócil aliado dos socialistas no governo. Em compensação, os verdes, que nunca tiveram grande protagonismo na França, saíram fortalecidos, o que poderá trazer mudanças na relação de forças que apóia o Matignon (sede do governo) nos próximos meses.

Novidade – Aos 50 anos, o novo prefeito parisiense, Bertrand Delanoë, é um político incomum, mesmo para padrões franceses. Pied noir (designação dada aos franceses nascidos no Norte da África) originário de Túnis, Tunísia, ex-protetorado francês, ele é integrante do Partido Socialista Francês desde os 22 anos. Em 1998, durante um programa de tevê, surpreendeu a audiência ao assumir sua condição de homossexual. “Se eu não fosse, vocês nem teriam me convidado para este programa”, tripudiou. Em 1977, Delanoë foi eleito conselheiro (equivalente a vereador) de Paris, integrando o célebre Grupo do 18º Arrondissement (regiões em que se divide a capital), que fazia oposição cerrada à administração Chirac. Em 1981, elegeu-se deputado distrital e, em 1995, senador por Paris. Tornou-se conhecido por defender temas polêmicos, como a lei que regularizou a união de casais homossexuais, a distribuição de seringas descartáveis para viciados e o aumento de verbas para abrigos sociais. Durante a campanha eleitoral para a Prefeitura de Paris, preferiu falar de temas municipais e fez questão de se manter distante da baixaria dos candidatos de direita. No domingo 18, ao tomar conhecimento da vitória, chegou a chorar em público, para depois retomar a compostura: “Sou muito velho para ser emotivo”, disse.

Com a vitória de Delanoë, Paris se une a grandes cidades européias que atualmente são dirigidas por políticos de esquerda, como Londres, Roma, Barcelona, Genebra e Viena. Durante sua estada em Paris no mês passado, a prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (PT), chegou a participar de um comício de Delanoë. Mas nem solidariedade internacional nem a histórica vitória em Paris escondem o fato de que a direita francesa teve um número de votos bem maior do que a esquerda, inclusive na capital, onde os conservadores tiveram 51% dos votos, mas elegeram apenas 71 conselheiros contra 92 da esquerda. Assim, Delanoë levou por causa da cizânia instalada nas fileiras do conservadorismo, mas também em razão do complicado sistema eleitoral francês.

Nos próximos meses, os socialistas têm pela frente o desafio de remodelar sua aliança com os comunistas e os verdes. Já os conservadores precisam unir os cacos e capitalizar os votos da extrema-direita de Jean-Marie Le Pen, que também saiu enfraquecida, mas está longe de ter desaparecido do cenário político francês. Reciclado, o espírito da Comuna de Paris está novamente rondando a França pós-moderna