Helcio Nagamine
Aulas de dança flamenca e mímica para compor o anti-herói de Cervantes

Mesmo quando Carlos Moreno arregala seus olhos azuisíssimos, protegido pela caracterização de algum dos quase 90 personagens hilariantes que já viveu nos famosos comerciais de produtos de limpeza, não dá para se ter a dimensão total da sua expressividade fora da televisão. Ainda mais nos momentos em que ele se empolga para falar do espetáculo Quixote, um delicioso monólogo de livre concepção, tendo como base o clássico Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, em cartaz em São Paulo. Com pouquíssimos recursos cênicos, a peça assinada por Moreno e Fábio Namatame, a quem também é creditada a direção, tem criado uma grande empatia com a platéia que, invariavelmente, é requisitada a entrar no mundo fantasioso do personagem. A montagem, propositadamente minimalista a princípio, recorreria a cenários, bonecos, acessórios, projeções. Mas a dupla concluiu ser melhor lidar com a essência de Quixote e, assim, liberar o delírio imaginativo daquele que transformava a realidade em fantasia, convidando o público a trabalhar com seu imaginário. O resultado é brilhante. Em 1h20, o ator paulista de 46 anos leva todos a se emocionar, rir e se indignar com as histórias ali contadas, sempre com a atualidade antevista na obra de Cervantes. “O elenco sou eu e quantas pessoas estiverem na platéia”, afirmou Moreno a ISTOÉ.

Há sete anos, Carlos Moreno queria encenar seu Quixote. Pensou num espetáculo em conjunto com Denise Stocklos, de quem é admirador, e, devido a circunstâncias, não deu certo. Também tentou uma adaptação feita por Caio Fernando Abreu até chegar neste formato, sintetizando sua vontade de se colocar em cena como cidadão e ator. Coincidentemente, demorou sete meses para terminar a montagem, dando um involuntário caráter cabalístico a ela. No meio do processo, percebeu os pontos em comum entre o fidalgo Alonso Quijana, de cuja mente delirante saiu Dom Quixote, e a função do ator, que vai se vestindo com retalhos de realidade e ficção. O esforço de Moreno para alcançar a alma do personagem nota-se nas sutilezas de uma postura adquirida em aulas de dança flamenca e no gestual vindo do contato com a mímica e a commedia dell’arte, incluindo curso de improvisação e conscientização corporal. “O Fábio disse que o meu repertório estava restrito ao rosto e às mãos”, conta ele, referindo-se ao divertido garoto Bom Bril, que desde 1978 só aparece da cintura para cima. E para dar vida ao seu Quixote, nem foi preciso Carlos Moreno colocar no palco os famosos moinhos. A delirante realidade brasileira é suficiente.