HENRIQUE ESTEVES/AGIF/FOLHA IMAGEM

ORDEM UNIDA Ao longo da história, eles às vezes marcharam contra os cidadãos

 

Nas últimas semanas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfrentou manifestações de insubordinação de pelo menos cinco oficiais-generais em postos de comando. A mais recente ocorreu na sexta-feira 9, quando o general-de-brigada Eliezer Monteiro, comandante da 1ª Brigada de Infantaria da Selva, sediada em Boa Vista (Roraima), recebeu uma comissão de arrozeiros e políticos com reivindicações contra a política do governo federal na Raposa Terra do Sol. Trata-se de uma área de reserva indígena contínua criada pela União e que, para sua implementação, exigirá a retirada dos arrozeiros da região. A decisão está no Supremo Tribunal Federal, mas o general Monteiro endossou publicamente as críticas ao governo: “A terra que está lá, ainda que dentro da reserva, ainda está sob o nome de suas famílias. É dos senhores”, disse o comandante aos arrozeiros. A manifestação irritou profundamente o Palácio do Planalto, que já estava agastado com as declarações feitas há um mês pelo comandante militar da Amazônia, general-de-exército Augusto Heleno Pereira. Ao discursar no Clube Militar, ele chamou a política indigenista do governo de “lamentável e caótica”. Para piorar as coisas, o general recebeu a solidariedade de outros potentados militares, o comandante militar do Leste, general-de-exército Luiz Cesário da Silveira Filho, e seu chefe do Estado-Maior, general-de-brigada Mário Madureira. O comandante da 2ª Brigada de Infantaria da Selva, em São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, general-de-brigada Antônio Mourão, foi além e reverberou: “Esse tipo de política não nos favorece”, afirmou. Ao longo da semana, em Brasília, os rumores eram de que o governo removeria o general Heleno e seus subordinados da Amazônia. E também puniria o titular do Comando do Leste. Mas o governo, no entanto, fez ouvidos moucos. O presidente Lula, que é o comandante- em-chefe das Forças Armadas, não se manifestou. No Ministério da Defesa, o ministro Nelson Jobim mandou sua assessoria avisar que não estava “zangado” com as críticas dos comandantes militares à política do governo. Tanto que levou o comandante do Exército, general Enzo Peri, para viagens à Argentina, ao Chile e ao Uruguai ao longo da semana. Ao mesmo tempo, Jobim trabalhou junto ao presidente Lula pelo anúncio de um reajuste salarial de até 137% para os militares como forma de reduzir a crise nos quartéis. O reajuste foi confirmado na quarta-feira 14. A insatisfação salarial poderia até ser uma das vertentes do problema. Mas engana-se o governo se acha que o reajuste será capaz de, por si só, amenizar o clima de insubordinação. Oficiais-generais ouvidos por ISTOÉ, e que pediram anonimato, disseram que, no caso da política indigenista e da demarcação de Raposa Serra do Sol, há uma profunda diferença de visão quanto ao problema da Amazônia e da ocupação da fronteira Norte. Para os militares, a Região Amazônica é a área brasileira mais vulnerável, desprotegida e ameaçada. E, nas suas simulações, a que mais corre risco de, no futuro, virar palco de algum conflito. Daí a decisão de abandonar a postura mais subserviente e enfrentar o debate. Com sua lógica militar, os oficiais contabilizam o início do debate sobre o tema que ensejaram como uma “conquista”. Comemoram o fato de que a decisão final sobre a demarcação da reserva em Roraima terá que passar agora pelo Supremo Tribunal Federal.

CADEIA DE COMANDO O ministro Nelson Jobim levou o general Enzo Peri em suas viagens

 

Há outro embate sendo preparado na caserna. Para o Exército, a fraca presença do Estado na Amazônia sobrecarrega as Forças Armadas, que não podem ficar excluídas do debate sobre a região. Os militares reclamam que, no final, eles é que suprem a falta de estrutura do Estado para lidar com as populações indígenas. No contato com os índios, uma das reclamações que os oficiais ouvem é que programas como o Luz para Todos não chegam às aldeias. É nesse tipo de lacuna que entram as ONGs, segundo os militares, para atender às necessidades locais. O deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) diz que a caserna não vai ficar em silêncio. “Que governo é esse que se furta da opinião dos militares para sua política estratégica de fronteira?”, provoca ele.

As Forças Armadas são uma instituição moldada pela disciplina e pela hierarquia e, por isso, essas manifestações causam inquietação. No passado, parte da oficialidade subverteu esses princípios e se arvorou em intérprete dos interesses nacionais, à revelia do resto da sociedade. O resultado foi a instabilidade política que culminou em 21 anos de ditadura.

Da indisciplina à anarquia
A interferência dos militares na vida política brasileira se tornou marcante a partir de 1889, com a proclamação da República – ela própria fruto de um golpe militar. O professor Oliveiros S. Ferreira denomina de Partido Fardado o setor militar que se considera “legitimamente o intérprete da Constituição no que diz respeito ao seu relacionamento com o governo”. A República Velha (1889-1930) viu eclodir diversas rebeliões militares antioligárquicas, entre elas o tenentismo e a Coluna Prestes. Em 1937, Getúlio Vargas implantou o Estado Novo com o apoio do Exército e fez dos militares os “guardiães” da Nação. No período democrático (1946- 1964), as Forças Armadas intervieram abertamente na política – na maioria das vezes, incitadas por setores civis, que Castello Branco chamaria de “vivandeiras”. Em 1964, os generais assumiram diretamente o poder e as Forças Armadas mergulharam na anarquia militar. A entropia só foi estancada em 1977, quando o general Ernesto Geisel demitiu o ministro do Exército e restabeleceu a disciplina e a hierarquia