18/07/2001 - 10:00
Nos salões parisienses do século XIX, onde a intelectualidade se reunia e o poeta simbolista Paul Verlaine (1844-96) reinava absoluto como o mais importante entre seus contemporâneos, um jovem provinciano de 17 anos, cabelos espetados, roupas amarfanhadas e olhos azuis-claros cobertos por uma tênue cortina de timidez, que escondia altivez e ironia, derrubou conceitos com versos tão avassaladores quanto as armas usadas pelos revoltosos da Comuna de Paris. Seu nome era Arthur Rimbaud (1854-91), considerado um marco na poesia mundial por amarrar sentimentos de liberdade e desespero e abraçar uma modernidade no sentido mais amplo do termo, até hoje invocada na sua essência. Não à toa, Rimbaud influenciou mitos pop como Jim Morrison, o hedonista ex-líder da banda americana The Doors, ou Cazuza, o maior poeta do rock brasileiro. Pelas circunstâncias intelectuais, Rimbaud e Verlaine acabaram mantendo durante pouco mais de um ano um relacionamento incendiário e conturbado, que terminou em tragédia, mas sacudiu a poesia para sempre. A relação dilacerada dos dois poetas está sendo magistralmente encenada no palco do Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, com a peça Pólvora e poesia, de Alcides Nogueira. Trata-se de um espetáculo de conjunção perfeita entre o texto de Nogueira, a direção e iluminação de Marcio Aurelio, a cenografia e os figurinos de Gabriel Villela e as atuações de ourives de João Vitti como Rimbaud e Leopoldo Pacheco no papel de Verlaine.
Num período em que a cultura nacional vive momentos de impasse, carregando o baixo-astral reinante no País, Pólvora e poesia junta-se em qualidade e intensidade à peça Um porto para Elizabeth Bishop, de Marta Góes – também em cartaz em São Paulo –, ao filme Bicho de sete cabeças, de Laís Bodanzky, e ao show Noites do norte, de Caetano Veloso, os dois últimos rodando o Brasil. São quatro exemplos – poucos, é verdade – de que nem tudo está perdido e que ainda há rastros de inteligência e beleza em terras nacionais. À exceção do espetáculo de Caetano, no qual sua música e voz provocam total deleite, as duas peças e o filme não são exatamente diversões fáceis. Ao contrário, cada um a seu modo instiga o espectador a reflexões e a atos críticos sobre o relacionamento humano. Em Pólvora e poesia, apesar do cerne ser a relação entre dois homens, a abordagem é universal. Afinal, todo mundo que deu a cara para bater já sofreu abandono e desamor. Alcides Nogueira foi capaz de mostrar com paixão, delírio e humor a vida de dois dos maiores poetas que a humanidade já criou. “Não me interessava apenas a história deles, nem queria fazer um recital de poesia. O que eu quis foi mostrar a gênese do poema e ilustrar certos fatos da vida dos dois”, contou Nogueira a ISTOÉ.
Como resultado tem-se uma história apaixonante, com uma obra riquíssima, misturando realidade e ficção. O texto foi escrito à maneira de Rimbaud e Verlaine. Poemas de um se misturam à fala do outro, porque o importante é acentuar o quanto a poesia do Rimbaud dadaísta – conceito que involuntariamente ele determinou com quase um século de antecedência – chacoalhou a de Verlaine. A peça é também uma total elegia à beleza. Da iluminação quase toda em tons ocres ao cenário de palco inclinado, tendo ao fundo uma parede de papelão agressivamente rabiscada e rasgada, representando na quentura do material a relação esgarçada dos dois poetas. Show clássico emoldurado de contemporaneidade. No começo da gestão de seu projeto, Nogueira confessa que houve a tentação de usar Rimbaud como mito pop. “Mas ele é tão contemporâneo que não havia necessidade. Rimbaud é uma faca que corta por si mesma e o importante era contar o que aconteceu com Verlaine ao ser solapado por um menino do campo que detonou a poesia francesa e universal.”
Minimalismo – Assim, vêem-se em cena dois atores maduros, vivendo e passando para o espectador dor e prazer solidificados num só sentimento. João Vitti traz à tona, na postura e nos olhares sutis, o lado demoníaco e de anjo sujo de Rimbaud. Em gestos minimalistas, deixa entrever o homem masculinamente feminino, capaz de agredir toda uma sociedade e de ironizar a família que o acolhe. Incluindo Mathilde, mulher de Verlaine, que serve de álibi constante para este não embarcar na loucura do amante e não se transformar num arauto da bebida e das drogas e acabar vasculhando comida no lixo, numa espécie de autoflagelação, como descreve em ensaio o poeta mineiro Ivo Barroso. Leopoldo Pacheco encarna com emoção à flor da pele um Verlaine totalmente dilacerado pelo contato com o novo, representado naquele fedelho da província que, presunçosamente e com todo o talento a lhe respaldar, anulou velhas máximas poéticas, vomitando versos cortantes. Um garoto insinuante e fedido, cheio de piolhos, que lhe despertou desejos até então adormecidos. “Estou feliz, porque estou hospedando um gênio que ainda vai explodir, que ainda vai mostrar sua poesia de fogo. Metralhadoras cuspindo versos em vermelho”, diz Verlaine/Pacheco, referindo-se ao futuro amante.
Não existem nas obras de Rimbaud e Verlaine menções explícitas sobre o relacionamento homossexual entre os dois. Nogueira levou a sério a constatação. Em nenhum momento a peça resvala para a vulgaridade ou apela em cenas com a intenção de atrair platéias gays. Há apenas um nu meteórico e metafórico de Vitti. “O que interessa é a forma poética que os unia”, determina o autor. Em total sintonia com o texto, o diretor Marcio Aurelio passou um mês e meio com os atores discutindo apenas a poética do som. A dupla realmente encontrou seus respectivos tons. Como trilha, Nogueira desde o princípio queria Chopin. Mas Aurelio achava que só a música de fundo traria frieza. Chegou, então, a um achado dos grandes encenadores. Colocou em cena um piano tocado ao vivo por Fernando Esteves. O próprio piano, em determinado momento, entra como elemento cênico.
Truque – Entre os trechos musicais escolhidos, o Prelúdio nº 20, opus 28 serve como tema soturno de Verlaine, nas ocasiões em que discute com Mathilde. Quando ele rompe com a mulher recém-parida e decide ficar com Rimbaud, ouve-se o mesmo prelúdio tocado por Esteves ao contrário, truque conseguido através do computador, que leu e criou uma nova partitura com as notas colocadas de trás para frente. “Como posso ser um bom pai se não conheço a bondade?”, irrompe Verlaine, sempre a medir consequências, numa diferença abissal de valores éticos em relação a Rimbaud, a pólvora que incendiou a poesia do outro. Em Uma temporada no inferno, derradeira obra de Rimbaud – que, com 19 anos, abandonou definitivamente a poesia para se aventurar no mundo em busca de riquezas nunca vindas –, há uma frase emblemática sobre o fim do desregramento dos sentidos que pode perfeitamente ser aplicada ao espetáculo em questão: “Hoje sei aclamar a beleza."