Até pouco tempo atrás, pacientes com algum tipo de lesão cerebral estavam destinados a ficar na cama. Achava-se que pelo fato de os neurônios (células nervosas) estarem lesados as sequelas seriam irreversíveis. Felizmente esse conceito vem mudando. E isso está acontecendo porque o cérebro também passou a receber atenção psicológica, muito em função do desenvolvimento de uma nova área da ciência batizada de neuropsicologia. Um dos objetivos da especialidade é ajudar o doente a criar alternativas para driblar as limitações impostas pelas sequelas. “Se a pessoa perdeu a memória, a orientamos a usar uma agenda para anotar os acontecimentos”, exemplifica a neuropsicóloga Lúcia Willadino Braga, do Hospital Rede Sarah, em Brasília. Dessa maneira, torna-se possível para o doente levar uma vida normal e, melhor ainda, com qualidade. Pela importância que vem adquirindo no tratamento dos doentes, essa abordagem foi o tema central da 1ª Conferência Internacional sobre Lesão Cerebral, realizada na semana passada no hospital brasiliense.

Cientistas se reuniram para discutir as melhores maneiras de estimular rapidamente e com eficácia a reabilitação, principalmente a de vítimas de acidente vascular cerebral (avc), conhecido como derrame, traumatismo craniano e paralisia cerebral. Estes estão entre os problemas mais frequentes sofridos pelo cérebro. Para se ter uma idéia, calcula-se que o avc atinja 62 mil pessoas por ano no País (o acidente é caracterizado pelo rompimento de um vaso sanguíneo). O traumatismo craniano – consequência de uma forte pancada no crânio – afeta cinco mil pessoas anualmente e uma paralisia cerebral (doença originada, por exemplo, por complicações no parto) acontece a cada três dias no Brasil. As sequelas vão aparecer de acordo com a área afetada e incluem consequências difíceis como perda da coordenação motora, da fala e da capacidade de leitura, entre outras.

Um dos estudos apresentados mostrou como é importante a participação da família no processo de recuperação psicológica dessas vítimas. Nos últimos seis anos, o pesquisador Gerárd Deloche, da Universidade de Reims Champagne Ardene, na França, vem analisando o comportamento dos pacientes depois do trauma. “Avaliamos se eles se tornam agressivos ou deprimidos”, conta Deloche. “Aqueles que têm uma relação afetiva boa com os parentes conseguem superar mais facilmente as doenças e ter uma qualidade de vida melhor”, diz. Outro trabalho que salienta como a família tem papel fundamental na reabilitação foi realizado pela neuropsicóloga Lúcia. Ela comparou o desenvolvimento motor e a inteligência de dois grupos, cada um composto por 90 crianças com lesões no cérebro. O primeiro recebeu fisioterapia dos médicos e o outro foi tratado pela família, obviamente orientada pelos profissionais para aplicar os exercícios nos filhos. “Quem fez o tratamento com os pais melhorou em média 50% a mais a coordenação motora e a inteligência”, afirma Lúcia. “Mas as atividades precisam ser aplicadas de forma correta para ter efeito”, ressalta a neuropsicóloga. A técnica já é usada na Rede Sarah e uma das intenções da cientista era comprovar seus efeitos. A dona-de-casa Sheila Ferreira de Paula, 18 anos, sabe que o tratamento é eficaz. Seu filho, Vitor Hugo, de um ano e meio, melhorou com a aplicação do procedimento pela mãe. O menino sofre de um outro tipo de problema cerebral: hidrocefalia – acúmulo de líquor (líquido no cérebro). Aos três meses de idade, ele desenvolveu a doença depois de uma meningite. “Antes ele tinha dificuldades para engatinhar, sentia muita dor de cabeça e era agressivo”, conta Sheila. “Hoje meu filho está muito bem.”

Mapeamento – No encontro, os cientistas também apresentaram pesquisas que buscam desvendar a intricada rede cerebral. Algumas já dão pistas de como ela funciona. Uma das mais promissoras diz respeito ao mapeamento cerebral. Hoje, com o avanço de aparelhos mais precisos e sofisticados como a ressonância magnética funcional, é possível ver, por exemplo, que neurônios vizinhos assumem aos poucos a função dos que foram lesados. Para entender o fenômeno, basta imaginar um pisca-pisca. Mesmo se uma luz é queimada as outras continuam funcionando, mantendo o que for possível de luminosidade.

André Dusek
Kamila manteve controle
da prótese

A importância da cultura na atividade do cérebro foi outro estudo relevante apresentado no congresso. “A mente é formada pelo que você vive e aprende”, diz a pesquisadora Lúcia Willadino. Ela comparou o caminho do processamento de informações percorrido no cérebro de analfabetos e no de pessoas com curso superior quando fazem cálculos. Para desenhar esse trajeto, ela usou a ressonância magnética funcional. “Os analfabetos precisaram da área de visualização para realizar as contas, enquanto os alfabetizados usaram a de abstração, que exige muito menos esforço”, explica.

Muitas pesquisas abordadas no seminário ainda estão em andamento. Para o futuro, a medicina está investigando o possível benefício oferecido pelas chamadas células embrionárias (células sem especialização que, em laboratório, podem ser induzidas a se transformar em qualquer tipo de célula). O hospital Rede Sarah está realizando testes em animais. “Daqui a alguns anos pensamos em poder transformá-las em neurônios e transplantá-las para as partes danificadas do cérebro do doente”, almeja Lúcia. É como se os pesquisadores fizessem a troca de peças quebradas por outras novinhas. São pesquisas como essas que animam a comunidade científica e enchem ainda mais de esperança os pacientes.

Membro fantasma
André Dusek
“É possível continuar a viver. Basta ter coragem” Anne-Lise Christensen

Na conferência também houve a discussão de trabalhos sobre o comportamento do cérebro. Um deles diz respeito àquela história de que após a amputação de uma perna a pessoa continua sentindo dor na região retirada. O velho caso do “membro fantasma”. E, para surpresa de muita gente, a afirmação não é uma lenda. Isso porque a retirada de um órgão está associada à sensação dolorosa, processada e gravada no cérebro. O cirurgião Aloysio Campos da Paz, do Rede Sarah, mostrou a receita para combatê-la. “Se a prótese for colocada logo depois da cirurgia, o corpo envia sinais para o cérebro, que passa a ver o novo membro como se fosse a própria perna do paciente”, explica o médico. “Dessa forma, o doente conseguirá recuperar mais facilmente seus movimentos”. É o caso da estudante Kamila de Oliveira Soares, 18 anos, que precisou amputar a perna esquerda por causa de um tumor. Depois da operação, ela recebeu a prótese. “Kamila está bem e manteve grande parte da coordenação motora do órgão”, conta Campos da Paz. “Me vejo com as duas pernas”, resume a menina. Até o final deste ano há previsões de ser feito um estudo para avaliar como o cérebro age com relação à amputação dos braços.

A psicologia da mente
André Dusek
Lúcia estuda os caminhos percorridos pelas informações

Desde 1960, quando a neuropsicologia ainda era um assunto incipiente, a pesquisadora dinamarquesa Anne-Lise Christensen vem se dedicando a estudar como essa área da ciência pode ajudar a recuperar as capacidades dos pacientes com lesões cerebrais. Para colocar em prática sua vasta experiência, fundou em 1985, em Copenhagen, um centro de reabilitação psicológica para os doentes, onde trabalha atualmente. Durante o congresso, ela recebeu ISTOÉ para uma breve conversa.

ISTOÉ – O que é mais importante para a melhora do paciente, a neuropsicologia ou o tratamento com remédios?
Anne-Lise – O ideal é unir os dois aspectos. Mas se fosse necessário optaria pela reabilitação psicológica, pois não há remédio que recupere um indivíduo fragilizado emocionalmente.

ISTOÉ – A neuropsicologia fez com que a sociedade mudasse a forma de enxergar o paciente?
Anne-Lise – Sim. Antes o doente era muito estigmatizado. Muita gente achava que a vida da pessoa após uma lesão tinha acabado. Felizmente sabemos que não é assim. Eles vêm conseguindo se inserir mais rapidamente na sociedade, por causa dos avanços psicológicos e científicos.

ISTOÉ – Como o paciente lida com a situação?
Anne-Lise – Muitos dos que chegam ao nosso centro de recuperação não têm mais vontade de viver. Aos poucos, vamos tentando trabalhar com eles para mudar essa idéia. Tentamos mostrar aos pacientes que é possível sim continuar a viver. Basta ter coragem e força de vontade.