27/06/2001 - 10:00
Já dura 16 anos a batalha jurídica que tenta anular cinco testamentos deixados pela francesa Isabelle Giraud, que montou um império no Rio de Janeiro, durante o Estado Novo (1937-1945), explorando a prostituição. Madame Giraud, como se tornou conhecida, chegou no Rio na década de 30 e morreu em 1985, aos 90 anos, deixando vários testamentos e um patrimônio avaliado hoje em R$ 18 milhões. Entre os imóveis, os mais valiosos são o Edifício Giraud – um prédio de 11 andares no centro – e um apartamento na avenida Atlântica, em Copacabana, onde morava. Ela não teve filhos, e a disputa pelos bens começou logo após sua morte. Em 1974, Giraud fez um testamento beneficiando quatro sobrinhos. Mas, após essa data, descobriram-se mais cinco documentos.
Pela lei brasileira, o último testamento revoga os demais. E foi por causa deste último, lavrado em 7 de junho de 1983, que a briga começou. Nele, Giraud, naturalizada brasileira, distribuiu sua fortuna para 14 pessoas, entre elas a filha de criação, Neuza Arruda Mourão, duas empregadas, um amigo português, Jayme Teixeira Reboredo, e a instituição Aliança dos Cegos. Reboredo ganhou o prédio e Neuza o apartamento na avenida Atlântica. As sobrinhas Andrée Paule Madeleine Mout, Marie José Corniglion e os seus respectivos maridos, Edouard Chaves Cottalorda e Nilton Alves da Silva, foram excluídos da partilha. Eles pediram a anulação dos testamentos, lavrados entre 1980 e 1983, alegando a insanidade mental de madame Giraud. Perderam em todas as instâncias.
Mas a briga ainda não acabou. Em maio, uma ação rescisória foi distribuída no Tribunal de Justiça do Rio, pedindo a reavaliação do caso. O pedido foi indeferido em razão do não recolhimento das custas processuais, algo em torno de R$ 900 mil. “Vamos entrar com um mandado de segurança. A questão precisa ser reavaliada e a Constituição assegura Justiça gratuita para quem não pode pagar as custas de um processo”, contestou o médico Nilton Alves, marido de Marie, uma das sobrinhas. Até hoje, ele e a mulher não se conformam de ter ficado fora da herança. Sobre o passado e a origem dos bens da francesa – que recebeu do presidente Getúlio Vargas o título de cidadã brasileira –, Alves não faz rodeios: “Ela fez fortuna explorando o lenocínio numa época em que não havia motéis.” Segundo ele, “madame” construiu e dirigiu, na década de 40, um refinado centro de prostituição no Edifício Giraud, na avenida Presidente Antônio Carlos, 54. O prédio ela mesma batizou com o seu nome.
O sogro de Nilton Alves, Jules François Corniglion, 90 anos, pertenceu à Força Aérea francesa e conheceu Isabelle em 1947. “Ela era tia da minha mulher, mas era uma meretriz, isso eu não posso negar”, disse o ex-oficial. No prédio, ele conheceu personagens que marcaram época. “O jornalista Assis Chateaubriand era inquilino de uma das garçonnières”, lembrou o ex-oficial. A sobrinha Marie confirma que “os apartamentos eram alugados a políticos e empresários para encontros clandestinos”. A reação de Neuza Mourão Arruda, 55 anos, filha de criação de Giraud, é de indignação. “Falam mal da minha mãe, mas gostariam de ter ganhado um pedaço do dinheiro sujo dela”, rebateu. O advogado das sobrinhas, Roberto Dória Júnior, garante que madame Giraud sofreu um surto psicótico em 1976 e por essa razão não podia fazer testamento. Paulo César Machado, advogado de Neuza, é de poucas palavras: “Eles podem entrar com o recurso. Mas ela tinha o direito de deixar seus bens para quem entendesse merecer.”
A vida de madame Giraud é tão polêmica quanto seus testamentos. Casou a primeira vez em 1915. Em 1923, já divorciada, conheceu o adido cultural brasileiro em Marselha José de Carvalho e Silva. Ela procurava alguém para traduzir uma carta de amor que havia recebido de um oficial da Marinha brasileira com quem estava namorando. Ele traduziu a carta e, de quebra, se apaixonou. Casaram-se em Saint-Cyr, no mesmo ano, e viajaram pela Europa a serviço. “Na Alemanha, ela teve um caso com um diplomata alemão e o marido descobriu. O casamento acabou em desquite em 1931, no Rio”, relata Nilton. Segundo ele, sem marido, Giraud virou prostituta de luxo: “Ela prosperou, ganhou fama e amigos influentes, como o presidente Getúlio Vargas e Assis Chateaubriand.” O empresário francês René Picavet, 82 anos, conheceu Giraud em 1956. “Ela passava a maior parte do tempo na portaria do prédio cobrando os aluguéis dos seus inquilinos”, disse o francês. “Os sobrinhos viviam atrás do dinheiro dela. E quando morreu não estava louca,” afirmou Picavet.