Faltavam algumas horas para o amanhecer da quarta-feira 24 quando centenas de tanques levaram os soldados israelenses que deixaram Metula, uma das cidades do Sul do Líbano ocupadas por Israel durante 22 anos. Alguns carregavam apenas seus inseparáveis fuzis M-16, poucas peças de roupas e seus celulares. A pressa foi tanta que vários deles deixaram a comida queimando no fogo. Os equipamentos militares tiveram de ser transportados para Israel de avião. Eram os últimos do Exército israelense a abandonar de vez o território de 850 quilômetros ocupado por Israel desde 1978, eufemisticamente denominada “zona de segurança” pelas forças de ocupação. “Não deu tempo nem de arriar a bandeira”, disse um dos soldados em meio à caótica retirada. As tropas israelenses foram seguidas pelo Exército do Sul do Líbano (ESL), formado por libaneses cristãos, que em todos esses anos estiveram ao lado de Israel na ocupação. Se houve alívio por parte dos soldados israelenses, o mesmo não aconteceu com o ESL. Sentiram-se traídos, abandonados à própria sorte. “Por que lutamos e moramos juntos durante 22 anos? Se fosse israelense estaria envergonhado do governo pelo que ele está fazendo. Fomos tão aliados de Israel como foram os Estados Unidos”, reclamou um dos milicianos.

Logo atrás dos tanques israelenses despontaram rapidamente centenas de partidários do grupo guerrilheiro muçulmano xiita Hizbollah (Partido de Deus), celebrando a retirada de um dos mais modernos e equipados Exércitos do mundo. No alvorecer, as cidades foram tomadas pelo amarelo das bandeiras dos xiitas. Mais de 300 caravanas tomaram as cidades do sul do Líbano enchendo o ar com o som das buzinas. “Você tem idéia do que seja um pássaro deixar sua gaiola? É assim que me sinto”, afirmou um militante do Hizbollah. Mulheres jogavam arroz e pétalas nas pessoas e dançavam a tradicional dança libanesa dabka jig. Centenas invadiram a prisão de Kiam – principal símbolo de ocupação israelense – e libertaram os 144 presos gritando: “Nasser-Allah” ou “Vitória de Deus”.

Se houve chuva de pétalas, isso não significa que a retirada tenha sido um mar de rosas. Os milicianos do Hizbollah atiraram contra os soldados israelenses e ameaçaram os judeus que durante anos foram ali assentados. “Vejo milícias do Hizbollah passando pela minha janela”, afirmou a moradora judia de Kiryat Shmona, Simcha Cohen. Em resposta aos possíveis ataques do grupo guerrilheiro, o general e premiê israelense Ehud Barak mandou um áspero recado através do chefe do Estado-Maior do Exército de Israel, general Saul Mofáz. “O Exército irá recorrer a qualquer meio para assegurar a calma no Norte. Atacará, inclusive, posições sírias no Líbano, caso seja necessário”, afirmou Mofáz.

A saída do Exército israelense do Sul do Líbano, promessa eleitoral do premiê Barak, foi tão humilhante para Israel quanto a guerra do Vietnã para os EUA. Barak, que prometeu “trazer os meninos de volta”, havia anunciado a desocupação do Sul do Líbano para o dia 7 de julho. Mas o primeiro-ministro errou no timming político. Em algumas cidades que abandonou, o exército israelense deixou o controle com o ESL. Violentos protestos da população intimidaram a milícia pró-israelense, e cerca de 2.500 soldados do ESL se entregaram ao Exército libanês e ao Hizbollah.

Massacres – A maioria da população de Israel não apoiava a ocupação, que matou mais de 1.500 soldados israelenses (leia quadro). Até o próprio Barak afirmou que a retirada representava o “fim da tragédia”. Tragédia marcada por equívocos e massacres de civis. Israel atacou o Líbano em 1978, a fim de destruir as bases da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). Em 1982, nova invasão, a chamada “Operação Paz na Galiléia”, durante a qual milícias cristãs assassinaram centenas de refugiados palestinos em Sabra e Chatila com a conivência de Israel. Em 1996, bombardeios israelenses contra posições do Hizbollah provocaram a morte de 105 civis, manchando a reputação de pacifista do então premiê Shimon Peres. E, apesar da longa ocupação, Israel nunca conseguiu se livrar da ameaça de ataques dos Katyushas do Hizbollah.

O fim da ocupação não significa, contudo, que a paz esteja ao alcance da mão, pelo menos por enquanto. A Síria ainda controla o Líbano, mantendo ali cerca de 35 mil soldados, além de contar com o apoio do Hizbollah. Damasco disse que a retirada não é suficiente para sentar-se à mesa de negociações com os líderes israelenses e avisou que a paz só virá depois que tiver de volta as Colinas de Golã – território tomado da Síria por Israel desde a Guerra dos Seis Dias em 1967. O Hizbollah também não dá sinais de tranquilidade. “A resistência a Israel continuará até que Shebbaa (área de Golã) seja devolvida e os libaneses presos em Israel sejam soltos”, afirmou o líder xeque Hassan Nasrallah.

“Deixem o Líbano em paz”
"A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu.” Chico Buarque traduz nesta frase um fragmento da dor que sente uma mãe ao sentar-se na cama onde um dia dormiu em paz seu filho. Foi essa dor que quase impediu Aba de falar em lágrimas sobre a perda do filho Noam Barnea, 17 anos. Noam morreu no dia 12 de abril de 1999 ao desativar uma mina colocada pelo Hizbollah, no Sul do Líbano. “Essa dor levarei comigo para sempre”, disse Aba a Istoé em sua casa num subúrbio de Tel-Aviv. O anúncio da morte do filho também nunca mais será esquecido pelo pai, Aaron. “Todo pai que tem um filho no Exército sabe o que significa três soldados batendo à sua porta naquela hora da noite. Levarei a imagem daqueles três homens para o túmulo.” Parecia que Noam, um brilhante estudante, havia previsto seu destino. Momentos antes de deixar seu posto em Beaufort, Noam colocou em seu peito um broche que foi presente de sua mãe. Nele estava a frase: “Deixem o Líbano em paz.” Noam pertencia a uma geração que não queria mais combater nos territórios ocupados. O slogan fazia parte de uma campanha pela retirada das tropas israelenses do Sul do Líbano. “Meu filho deu sua vida por uma guerra sem sentido. Ele não morreu numa batalha.” Faltavam apenas cinco dias para Noam deixar o Exército quando foi atingido pela bomba.