Ele não tem votos, não faz corpo a corpo com o eleitor e não dirige nenhuma estatal. Mesmo assim, o gaúcho Marco Aurélio Garcia se tornou, nos últimos três anos, um dos homens mais poderosos da República. A localização de sua pequena e desarrumada sala de trabalho dá uma idéia do poder que ele concentra: fica no terceiro andar do Palácio do Planalto, entre os gabinetes do presidente e da primeira-dama. Eminência parda do presidente Lula para assuntos internacionais, desde 2003 divide com o Itamaraty a autoria do desenho dos caminhos do Brasil pelo mundo afora. Habilidoso nos bastidores, foi ganhando espaço. Na crise que abalou o centro do governo com o escândalo do mensalão, ao lado do ministro da Justiça, Marco Aurélio ganhou o status de conselheiro número 1 do presidente, uma espécie de grilo-falante. Depois, foi escalado para a coordenação do programa de governo de Lula à reeleição, lugar que em 2002 foi de Antonio Palocci. Com o escândalo da compra do dossiê contra os tucanos, protagonizado pelos aloprados petistas às vésperas do primeiro turno, substituiu Ricardo Berzoini na coordenação da campanha e na presidência do PT. Agora, contabilizados os votos de 29 de outubro, Marco Aurélio se prepara para avançar mais. Quer o poder da caneta como ministro e sonha com o Itamaraty. Como não há sinalização de que o presidente pretenda tirar Celso Amorim do comando das relações exteriores, Marco Aurélio está disposto a encarar outras disputas. Já cogitou do Ministério da Educação e também o da Cultura. Mas, a princípio, o que Lula deixa transparecer é que o quer mesmo é na presidência do PT, uma casa que precisa ser rapidamente arrumada. Além disso, o posto daria a Marco Aurélio uma cadeira cativa no conselho político do Planalto. A outra alternativa de Lula seria colocar Marco Aurélio na embaixada do Brasil em Paris.

Aos diplomatas incomodados com a divisão da política externa entre Marco Aurélio e Amorim, Lula costuma argumentar que o Itamaraty não pode cumprir “certas missões” com o mesmo desembaraço – nem “falar certas verdades”. Na quinta-feira 26, três dias antes da reeleição de Lula, o chanceler paralelo exerceu seu poder em um encontro secreto com Hector Arce, ministro da Coordenação Governamental de Evo Morales, em um hotel em São Paulo. Foi uma conversa áspera. Marco Aurélio ameaçou até cortar o acesso dos bolivianos ao Porto de Santos se o caso Petrobras não tivesse um desfecho razoável para a estatal brasileira. Morales logo entendeu que não era um blefe diplomático, mas um recado de quem realmente manda. E recuou. Sem acesso ao porto, os bolivianos não teriam como fazer para manter seu comércio exterior.

Apesar da conversa dura com o boliviano, Evo Morales é o segundo xodó de Marco Aurélio. O primeiro é Hugo Chávez, que ele ajudou ao organizar o apoio de presidentes sul-americanos contra a tentativa de golpe na Venezuela em dezembro de 2002, antes mesmo da posse de Lula. “Queríamos sinalizar que não ficaríamos de braços cruzados diante do perigoso precedente de se derrubar um presidente eleito”, explica. Vem do chanceler paralelo a disposição de promover a defesa da integração sul-americana como prioridade da política externa brasileira. Foi dele a indicação de Amorim para o Itamaraty. E, a bem da verdade, não deixa de ser útil para o ministro a liberdade com que Marco Aurélio fustiga os Estados Unidos e propaga a aproximação com os emergentes.

Durante os anos difícies da ditadura militar, Marco Aurélio se refugiou em Cuba. O aprendizado adquirido na ilha de Fidel Castro foi útil na construção de táticas de guerrilha eleitoral que ele adotou na reta final da campanha pela reeleição de Lula. A principal, chamada de terrorismo pelos tucanos, foi espalhar que Geraldo Alckmin venderia instituições sagradas como a Petrobras e o Banco do Brasil. “Terrorismo é o que eles fizeram conosco em 1994, 1998 e 2002”, responde o conselheiro de Lula. Não é por acaso que os tucanos o odeiam. A dois dias do segundo turno, ao ser perguntado por jornais argentinos se conhecia um político similar a Alckmin na Argentina, Garcia respondeu: “Não conheço e, se conhecesse, não diria. Não quero deixar ninguém ofendido.”

Com 65 anos, formado em direito e filosofia e professor licenciado de história do marxismo na Unicamp, Garcia também coleciona gafes que fazem a festa dos inimigos. Uma delas foi ao admitir, na guerra do Iraque, que o Brasil concederia asilo diplomático a Saddam Hussein. O Itamaraty teve de suar o smoking para explicar aos americanos que, como acadêmico, Marco Aurélio tinha liberdade para expor idéias inviáveis para a diplomacia. A liberdade para falar – e muitas vezes traduzir o pensamento presidencial – ele também exerce dentro do PT, por vezes criando algumas arestas. Na última semana, por exemplo, passou dos limites ao criticar o comportamento da imprensa durante o processo eleitoral. Quando Berzoini se afastou do comando do partido em função do escândalo da compra do dossiê, Lula foi curto e grosso na reunião do partido diante dos que ponderavam que Marco Aurélio não tinha traquejo para a função. “Ele é de minha inteira confiança.” Caso fique na presidência do PT, Marco Aurélio Garcia talvez tenha pela frente a mais difícil de suas missões, definida por ele mesmo: “O PT fará uma reforma interna muito profunda, reencontrando aqueles valores que estiveram presentes na nossa fundação e na maior parte da nossa história.”