james gathany/CDC

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A dengue completa 25 anos no Brasil. Erradicada na década de 1950, ressurgiu com toda força em 1982. Desde então, atingiu centenas de milhares de pessoas em todo o País e, na sua variante hemorrágica, levou à morte 350 doentes. Diante de um bombardeio regular, embora muitas vezes desorganizado, dos órgãos de saúde, o mosquitinho Aedes aegypti, o transmissor do vírus da doença, mostra que, apesar de pequeno, é forte e não tomba com qualquer golpe. Nos dois primeiros meses de 2007, o número de casos foi 25,64% maior em relação ao mesmo período de 2006. Dados parciais indicam que 190 mil brasileiros já tiveram a febre no primeiro trimestre deste ano. No ápice da atual infestação, o País, constrangido pela falta de estrutura, viu pacientes com os dolorosos sintomas da doença esperarem até 15 horas para ter atendimento médico em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, o Estado mais atingido, com 55 mil doentes. A doença continuará em ascensão até o final de maio, quando cairão a temperatura e a velocidade com que o mosquito se multiplica. Tudo indica que o ano fechará com um número maior de casos do que o registrado em 2006 – 345.922 doentes e 71 óbitos por dengue hemorrágica, a forma mais grave da doença (leia quadro à pág. 69).

Até voltar na década de 80, a dengue estava abolida do Brasil havia mais de 30 anos. Desta vez, o Aedes aegypti está tão perfeitamente disseminado e adaptado às cidades que os especialistas acreditam que ele pode ser controlado, mas não mais erradicado. A questão é inevitável: por que é tão difícil levar vantagem sobre o mosquito? O problema pode ter começado na largada da disputa. Acredita-se que a epidemia poderia ter sido contida quando ressurgiu se o País tivesse feito investimentos maciços no combate e na infra-estrutura sanitária. Não foi o que ocorreu. “Já erradicamos a malária e a dengue uma vez. Isso funcionou bem por um período. Depois surgiram agravantes como a proliferação de pneus, de favelas e o combate ficou mais complexo”, afirma Jaime Benchimol, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz, no Rio. O acúmulo de sujeira, os esgotos a céu aberto e a falta de água encanada em várias regiões formam o cenário ideal para o mosquito proliferar. “A sociedade tem de entender que é preciso passar por uma revolução urbana e melhorar a condição de vida nas cidades. E isso leva tempo”, analisa Luiz Jacintho da Silva, professor de infectologia da Universidade Federal de Campinas (SP).

max g pinto/renato velasco/max g pinto/hélcio nagamine

CENÁRIO PRONTO lixo descoberto, água parada e esgoto a céu aberto. É disso que o mosquito gosta

A epidemia atual tem características inquietantes. O principal problema é a expansão contínua do subtipo 3 do vírus. Há quatro variações conhecidas, mas apenas três circulam no Brasil. O tipo 4 fez uma aparição em Roraima, há mais de 20 anos, e sumiu. “A predominância do tipo 3 aumenta as chances de pessoas já infectadas pelos subtipos 1 e 2, que circularam mais antes de 2001, terem a forma grave da dengue”, alerta o infectologista Carlos Frederico Anjos, diretor do Instituto Emilio Ribas, em São Paulo. Anjos se preocupa com o eventual retorno do tipo 4, um grande risco para pessoas como a potiguar Ivete Mesquita, 49 anos, que mora no bairro de Campo Grande, na zona oeste do Rio. Ela já pegou dengue três vezes e tem chances multiplicadas de sofrer a forma grave da doença se aparecer um novo subtipo. “Tomo cuidado, mas os vizinhos não. Sempre aparece um caso.”

A preocupação faz sentido. A taxa brasileira de mortalidade por dengue hemorrágica, de 5,5%, está entre as maiores do mundo. Em 2006, morreram 71 pessoas. “Essa é uma morte evitável. Os médicos devem aprender a identificar os sintomas e os pacientes precisam buscar socorro”, diz Anjos. O porcentual aceito internacionalmente é 1%. “Para baixar os índices, estamos capacitando os médicos da rede pública para diagnosticar mais rapidamente os sintomas”, afirma o sanitarista Fabiano Pimenta, coordenador do Programa Nacional de Controle da Dengue. Identificada no início, a dengue hemorrágica melhora com soro fisiológico.

Além dos dramas estruturais, há outros. Um é a falta de integração dos vários níveis de governo para combater a dengue, apesar de a idéia de ação conjunta ser consensual. A fotógrafa e compositora Vange Milliet experimenta na prática os efeitos dessa ausência de entrosamento. Ela vive com o marido, o produtor musical e baixista Paulo Lepetit, e os dois filhos, Kim e Yuri, no Jardim Previdência, zona sul de São Paulo. “Há dois anos eu e meus vizinhos pedimos à prefeitura que limpe a galeria de águas pluviais ao lado da minha casa, que pode ser um dos criadouros desta área, onde há muitos casos de dengue. Nada foi feito até hoje”, diz Vange. Disposta a colaborar, há um mês ela saiu com a família de casa para que a equipe da vigilância sanitária pudesse borrifar a moradia com inseticida. Voltou uma hora e meia depois e soube que a turma do fumacê foi almoçar e não voltou mais. Dez dias depois, na Páscoa, Lepetit e a babá Suzana Silva tiveram os sintomas da dengue. “A Vigilância deveria divulgar a situação de cada bairro, para as pessoas se conscientizarem”, sugere Vange.

max g pinto

RISCO vange e lepetit, que teve dengue, querem a limpeza do terreno vizinho

Esse desencontro de ações é criticado pelo virologista americano Jack Woodall, membro de um programa internacional de monitoramento de doenças emergentes, o Promed. “Burocracia e lentidão não combinam com uma epidemia, consomem recursos financeiros sem resultados concretos e desmotivam a participação popular”, afirma. Também há divergências quanto à estratégia adotada, a borrifação, para matar mosquitos. “O fumacê só mata os borrachudos. Para atingir o Aedes aegypti seria preciso abrir as portas e janelas das casas e contar com uma corrente de vento que levasse o inseticida até a cabeça do mosquito para matá-lo, o que é quase impossível de acontecer”, afirma o entomologista Anthony Érico Guimarães, da Fundação Oswaldo Cruz.

A resistência da população a deixar os agentes de saúde entrar nas casas é outro empecilho. “Em São Paulo, essa atitude é mais comum nos bairros onde estão as casas de famílias de maior renda”, explica a médica sanitarista Bronislawa Castro, coordenadora do programa paulistano de controle da dengue. Mas, na contramão de quem acha que o comportamento das pessoas é um dos entraves centrais do controle da doença, o infectologista Luiz Jacintho da Silva, professor de infectologia da Unicamp, dispara: “É uma tentação fácil falar que o problema está na população. Se todos fizessem seu papel, o problema seria menor. Mas quem pode condenar um sujeito que tem de tomar um trem, pegar um ônibus e atravessar a cidade para trabalhar? Quando volta para casa, ele não pensa nos criadouros”, argumenta. Diante do pouco resultado dos métodos tradicionais, há países buscando alternativas. “Em Cingapura, na Ásia, estão usando armadilhas para pegar as fêmeas grávidas. Funciona para medir a infestação e reduzir a quantidade de mosquitos”, revela Eduardo Massad, professor da Universidade de São Paulo que participa dos esforços de contenção da doença no país a convite de um fundo criado e mantido por empresários asiáticos. Ele acredita que o número de infectados no Brasil seja pelo menos dez vezes maior do que o registrado oficialmente. “Falta informação confiável para compreender, analisar a epidemia e traçar planos para combatê-la”, diz.

renato velasco

ROTINA Ivete sofreu três
vezes com a doença

Outra esperança é a vacina. O Instituto Butantan, de São Paulo, está prestes a importar do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos a cepa de um vírus geneticamente modificado que poderá ser usado em uma vacina. “Se tudo der certo, ela ficará pronta em 2010”, afirma Isaías Raw, presidente da instituição. A Fiocruz também está se capacitando para produzir o fármaco. “Estamos fazendo um vírus geneticamente modificado. Testes em macacos já deram bons resultados”, informa Ricardo Galler, vice-presidente de Bio-Manguinhos. De todo modo, vacina alguma resolverá as condições de vida ruins. “Temos uma tolerância absurda com a precariedade”, conclui o infectologista Jacintho da Silva, da Unicamp. E para isso a vacina é a mudança de atitude.

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