Tudo o que o presidente Fernando Henrique Cardoso sempre desejou foi encerrar o segundo mandato como um exemplo de êxito na política: fazer seu sucessor e entrar para a História. FHC chegou a saborear esse sonho há dois meses, quando, depois de um longo jejum, voltou a experimentar índices de popularidade em ascensão. A economia brasileira mostrava capacidade de absorver a crise argentina, o peso da retração econômica americana ainda estava indefinido e o algoz mais incômodo do presidente, o senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), entrava na berlinda por fraudar o sigilo da votação que cassou o mandato do senador Luís Estevão (PMDB-DF). Mas o deleite durou pouco. No front externo, a situação econômica continua preocupante e no interno piorou sensivelmente com a crise de energia que vai barrar o crescimento da economia e causar desemprego. Essa reviravolta praticamente anula a expectativa do tucanato de que as boas notícias econômicas compensariam o desgaste da enxurrada de denúncias de corrupção contra o governo e seus parceiros políticos. Um verdadeiro apagão político está provocando o salve-se-quem-puder na base governista. Para desespero de Fernando Henrique, os aliados estão debandando para as candidaturas presidenciais do governador de Minas Gerais, Itamar Franco (PMDB), e do ex-ministro Ciro Gomes (PPS), dois viscerais adversários de FHC. Quem também está acreditando que desta vez chega lá é o petista Luiz Inácio Lula da Silva. “Até o momento, queríamos desgastar o governo. Agora temos que torcer para ele não desabar de vez”, tripudia o deputado petista José Genoíno (SP).

O entusiasmo petista não causa maiores preocupações no Palácio do Planalto. Lá, o temor é com o fortalecimento político de Itamar e sua crescente penetração na área empresarial, irritada com a barbeiragem administrativa que gerou a crise do apagão. No domingo 20, as bases do PMDB em todo o País elegeram as novas direções regionais e manifestaram claramente a disposição de concorrer com candidato próprio à Presidência da República. A ala peemedebista que flerta com o ministro da Saúde, José Serra (PSDB), perdeu terreno. Quem também pretende embarcar na canoa de Itamar é ACM. “Vou apoiar Itamar, mesmo que ele não tenha pedido”, anunciou o cacique baiano na terça-feira 22. Apesar de completamente desgastado em todo o País e com o reinado ameaçado na Bahia, Antônio Carlos ainda tem um balaio de votos cobiçado por outros presidenciáveis. O governador do Ceará, Tasso Jereissati (PSDB), é um deles. Depois de trabalhar para que a convenção nacional dos tucanos não votasse uma moção pela cassação de ACM e do ex-correligionário José Roberto Arruda, Tasso deu declarações contra a punição do cacique baiano. “Ele perdeu as condições éticas de se candidatar pelo partido”, censurou o senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT). Cria de Tasso, Ciro Gomes também tratou de bajular o coronel baiano, de maneira tão oportunista quanto seu padrinho político. Chegou a afirmar que a fraude não seria motivo suficiente para cassar ACM, aplicando uma rasteira no comando do seu partido, empenhado em punir Antônio Carlos.

Ao mesmo tempo que a dispersão da base fortalece seus adversários na disputa pela Presidência da República, os abalos na economia tornam mais remota a hipótese de FHC levar às eleições um candidato tucano forte. O racionamento de energia vem obrigando o governo a anunciar uma sucessão de más notícias, e do pior tipo, pois atingem diretamente a população. Na última semana, o Planalto decidiu editar uma medida provisória impedindo os brasileiros de usar o Código de Defesa do Consumidor contra o tarifaço e os cortes punitivos no fornecimento de energia (leia reportagem a partir da pág. 40). A crise do apagão, junto com a tendência de alta da inflação, também fez o Banco Central subir pelo terceiro mês consecutivo a taxa básica de juros da economia, que passou de 16,25% para 16,75% ao ano na última quarta-feira 23. Além do imediato efeito de elevar o custo e o prazo dos empréstimos ao consumidor, os juros mais altos têm o efeito de frear a economia. Técnicos da equipe econômica já trabalham com uma taxa de crescimento do PIB de pífios 2% em 2001, menos da metade dos 4,5% previstos pelo governo em dezembro. É um cenário de taxa de desemprego em alta e salários estagnados. Em um quadro econômico desfavorável, uma notícia ruim puxa outra. A persistente alta das cotações do dólar – na semana passada, a moeda americana bateu novo recorde desde o lançamento do Plano Real, chegando a R$ 2,39 – e o salto no preço internacional do barril do petróleo, que voltou a beirar a casa dos US$ 30, prenunciam novo aumento no preço da gasolina.

Incompetência – Desta vez, Fernando Henrique não tem sequer a batida desculpa de que os problemas foram gerados fora do País. O apagão é resultado da incompetência de sua própria equipe. Entre outros equívocos, FHC entregou o comando do setor de energia ao grupo de ACM, que sempre se gabou de excelência técnica nessa área, mas, na prática, produziu um desastre inédito. Em vez de cuidar da produção de energia, os carlistas estavam mais preocupados em fazer grandes negócios. A turma da OAS – a empreiteira da família de Antônio Carlos Magalhães – esperava faturar alto com o programa de construção de 49 termelétricas. O então ministro das Minas e Energia, Rodolpho Tourinho, descartou outras alternativas e apostou apenas em grandes turbinas produzidas só por quatro fabricantes em todo o planeta, hoje com filas de três anos para entrega. A crise energética na Califórnia atropelou o projeto brasileiro e tornou essas máquinas absolutamente escassas no mercado. Na última troca de guarda pefelista, saiu o carlista Tourinho e entrou o senador José Jorge (PFL-PE), da ala do vice-presidente da República, Marco Maciel. Ele não teve nem chance de mostrar se é ou não competente. Mal sentou na cadeira, estourou a crise e o pefelista virou um mero auxiliar do ministro de fato: o colega Pedro Parente, chefe da Casa Civil da Presidência da República, que ganhou o apelido de “ministro do Apagão” e também está tateando no escuro. Com o auxílio do primeiro-genro David Zylbersztajn, presidente da Agência Nacional do Petróleo, engendrou um programa de racionamento que embute uma perversa inversão de papéis, transformando o corte de energia – um custo que os erros do governo impuseram à população – em punição para quem fizer ou não sacrifício. Agora, para atenuar, cogita tomar emprestada a idéia do deputado petista Aloizio Mercadante (SP) e criar feriados semanais para reduzir o consumo de energia.

Largada queimada – Como não dá as cartas, José Jorge só teve chance de errar uma vez. Na largada. Fernando Henrique pretendia nomeá-lo ministro da Previdência e colocar na Pasta das Minas e Energia o deputado Roberto Brant (PFL-MG). Com a ajuda do senador Jorge Bornhausen (PFL-SC), conseguiu a troca. O pefelista esperava colher mais apoios eleitorais numa pasta onde circulam negócios e investimentos. Esse PFL que assumiu o naco de poder antes reservado ao feudo de ACM tem como principal cacife a lealdade a Fernando Henrique. Enfraquecida eleitoralmente pela derrocada do cacique baiano, a turma de Bornhausen e Maciel tem como principal meta a indicação do candidato a vice na chapa a ser lançada por FHC. A vaga, por sinal, estava destinada ao PMDB, que agora pretende dispensá-la por avaliar que tem mais chances de vitória no barco de Itamar Franco. Enquanto luta para evitar a redução da base política, o Planalto trabalha em tempo integral para impedir que o Congresso investigue alguns embaraçosos esqueletos. As apurações sobre as atividades de Eduardo Jorge Caldas Pereira, ex-secretário-geral da Presidência e ex-coordenador operacional da campanha da reeleição, são as que mais preocupam o governo. Toda vez que isso entra em pauta cresce o nervosismo nos principais gabinetes do Planalto. Outras histórias mal esclarecidas também atormentam. É o caso do bilionário socorro aos bancos Marka e FonteCindam, em que cada vez mais se enrola o ex-presidente do Banco Central Francisco Lopes. Na quarta-feira 23, a mulher de Lopes, Araci Pugliese, complicou ainda mais a situação do marido em depoimento que prestou na 6ª Vara da Justiça Federal, no Rio de Janeiro. “Quem entendia disso era o Chico. Ele resolvia essas questões”, disse Araci, ao explicar como se tornou sócia da Macrométrica no lugar do marido quando ele assumiu uma diretoria do BC. Na mesma quarta-feira, a colunista Teresa Cruvinel, de O Globo, publicou uma entrevista com Fernando Henrique em que ele ensaiou uma curiosa defesa do ex-presidente do BC da acusação de venda de informações sigilosas: “Posso dizer que Chico é um estúpido, mas não que seja canalha. Ele foi demitido porque fez tudo errado.” Na entrevista, FHC deu mostras de quanto está doendo o prematuro ocaso do governo. Partiu para um destemperado ataque a todos os que pisam nos seus calos. Acusou a oposição de praticar um “golpismo sem armas”, de alimentar um “clima de fascismo” e atentar contra a democracia. Sobrou até para os aliados gulosos que trocam apoio político por verbas e cargos. “Precisei avançar com o atraso, uma ironia da história”, tentou justificar o presidente, em tom de desabafo. Seu desalento tem bons motivos. Esperava um final de governo brilhante, mas corre o risco de terminar o mandato apagado como o ex-presidente José Sarney, contando os dias para passar a faixa presidencial e administrando uma economia feijão-com-arroz. Se tanto.