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O próximo ocupante da Casa Branca, seja Barack Obama, seja John McCain, terá um árduo desafio pela frente. Caberá ao futuro presidente americano a responsabilidade de reconstruir as bases do sistema financeiro e restaurar a confiança da sociedade nas leis do mercado. Os fatos da semana passada mostram que o pacote de socorro federal dos EUA, aprovado na tarde da sextafeira 3, não será suficiente para repor o carro nos eixos. A desconfiança se generalizou. O clima de incerteza contaminou a Europa e seus efeitos começaram a afetar as economias emergentes, para as quais as torneiras do crédito internacional se fecharam. Os sinais de recessão no mundo desenvolvido jogam por terra as cotações das principais commodities, em prejuízo das grandes empresas exportadoras dos chamados BRICs: Brasil, Rússia, Índia e China. "Diante deste cenário, o futuro presidente terá de se comportar com a energia e a grandeza de Franklin Roosevelt nos anos 30", afirma o professor Carlos Lessa, da UFRJ. E de preferência ter ao lado, para consultas, um economista do porte de John Maynard Keynes, que ajudou os EUA a sair da Grande Depressão.
Os EUA, sem dúvida, se ressentem da absoluta falta de liderança política. A queda recorde de Wall Street na segundafeira 29 de setembro, quando o Dow Jones despencou 777 pontos, foi prova inconteste de crise de autoridade de George W. Bush. Um fosso separa a imagem de Roosevelt da dos políticos atuais. Apesar de todos os esforços do presidente Bush e dos líderes dos partidos democrata e republicano, o Congresso americano iniciou a semana passada rejeitando, por 228 votos a 205, o pacote de socorro aos bancos negociado com o Departamento do Tesouro. A leitura eleitoreira dos parlamentares espalhou pânico pelos continentes. Ao negar apoio ao pacote de US$ 700 bilhões, a classe política gerou uma perda patrimonial nosEUA superior a US$ 1 trilhão.

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Thomas Friedman, um conceituado colunista do The New York Times, lamentou: "Temi pelo futuro de meu país poucas vezes em minha vida. Em 1962, quando menino de nove anos, acompanhei a tensão da crise dos mísseis com Cuba; em 1963, com o assassinato de John Kennedy; no 11 de setembro de 2001; e nesta segundafeira, quando os republicanos derrubaram o pacote de resgate bipartidário." Em discurso na Universidade de Nevada, na cidade de Reno, Barack Obama afirmou que não é hora de buscar os responsáveis. "A casa do vizinho está pegando fogo e ameaça a sua casa. Não importa se ele dormia com o cigarro aceso. É hora de apagar o incêndio." O democrata alertou que, se a crise se aprofundar, as pessoas terão dificuldade para obter financiamento para comprar a casa própria, para pagar a faculdade ou comprar um carro. O republicano McCain fez discurso no mesmo sentido. E, na quartafeira 1º de outubro, por 74 votos a 25, o Senado aprovou o pacote de socorro, com penduricalhos também eleitoreiros, que elevam a conta para US$ 850 bilhões. Na sextafeira 3, a Câmara aprovou, por 263 a 171, a nova versão do plano.
Entre os economistas, porém, o pacote já não é tão relevante. Permitirá o retorno da liquidez, à medida que o Tesouro absorver os títulos podres que se multiplicaram com a bolha imobiliária. Mas a negociação do secretário do Tesouro, Henry Paulson, com os bancos será dura. Eles terão que engolir deságios altos. Além de J.P.Morgan, Citibank e Bank of America, a única instituição com folga de caixa é o Wells Fargo, que na sextafeira 3 anunciou a compra do Wachovia por US$ 15,1 bilhões. Até então, o Wachovia, quarto maior banco de varejo americano, estava para se associar ao Citibank. Para além da recuperação das instituições, estão em xeque os atuais mecanismos de controle do mercado, o que poderá propiciar uma nova ordem econômica mundial. Fracassaram as iniciativas tomadas pela SEC, o órgão regulador do mercado de capitais nos EUA, que, em 2004, autorizou os bancos de investimentos, com patrimônio superior a US$ 5 bilhões, a aumentar a alavancagem. Uma coincidência: à época, Henry Paulson participou da reunião, defendendo os interesses privados da Goldman Sachs. A liberalidade mostrouse desastrosa. As leis de mercado não funcionaram e, agora, como nos tempos de Roosevelt, só resta ao Estado intervir. Em boletim da última semana, a agência de classificação de riscos Standard & Poor’s lembra que "muitas das regras que regem o sistema financeiro ainda têm raízes na Grande Depressão da década de 30". É hora de revêlas. "A demanda por reformas no marco regulatório vai ajudar a preservar os ativos financeiros e não financeiros", diz a S&P, ressaltando, porém, que o mercado não vai se recuperar no curto prazo.

i67375.jpgSem enxergar luz no fim do túnel, a Europa tenta se proteger do pior. Bancos do outro lado do Atlântico foram contaminados e tiveram de ser socorridos às pressas. Em menos de uma semana, quatro instituições da União Européia tiveram as falências evitadas graças à intervenção estatal e ao desembolso de algumas dezenas de bilhões de euros: o britânico Bradford & Bingley, o belgaholandês Fortis, o francês Dexia e o alemão Hypo Real Estate. Eles padecem do mesmo mal americano: estão ilíquidos e carregam títulos podres. Na tentativa de se isolar da crise, o governo da Irlanda passou a dar garantia ilimitada aos depósitos, papéis e dívidas dos bancos do país. Uma espécie de estatização velada, que pode chegar a US$ 560 bilhões. Mas foi criticado, principalmente pela Inglaterra, que teme a fuga de capitais dos bancos britânicos, com um efeito dominó na região. A crise bancária vai ser o maior teste da União Européia e de sua moeda comum. Ações isoladas, como a da Irlanda, podem cindir o bloco.
Ciente do problema, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, marcou uma reunião em Paris com colegas da Alemanha, da Itália e da Grã- Bretanha para discutir saídas para a crise. Mas fez questão de desmentir os rumores de que a União Européia prepara um socorro de 300 bilhões de euros para sanear o mercado. "Eu nego tanto o volume quanto o princípio", assegurou o presidente francês, que tem cobrado do governo Bush o debate da crise em fóruns internacionais. O que está se desenhando na Europa e nos EUA é a criação de um novo órgão multilateral responsável pela governança global do mercado financeiro. A entidade funcionaria como um xerife dos mercados, acima das conveniências nacionais. Esse papel deveria ser exercido pelo FMI, mas a instituição se manteve apática até agora. O que não é novidade.
Nesse ambiente de incerteza, o Brasil, obviamente, não poderia passar incólume. A crise bateu às portas das empresas brasileiras que se financiam no Exterior. "As fontes de crédito secaram. O canal de financiamento externo não está funcionando", constata o economista Ilan Goldfajn, da Ciano Investimentos. O especialista em comércio exterior Joseph Tutundjian alerta que o mercado de adiantamento de contratos de câmbio, os ACCs, está paralisado. Temerosos, os bancos sentaram em cima do dinheiro. A cautela se justifica, mas cria grande dificuldade para as empresas exportadoras. A essa altura, a Bolsa de São Paulo, que já perdeu 30% neste ano, passou a acusar mais a realidade das empresas nacionais do que os percalços do pacote americano. Afinal, falta crédito e caem os preços de commodities.

Diante do contágio, o governo Lula decidiu agir. Segundo o ministro do Desenvolvimento, Miguel Jorge, "tudo será feito para garantir o financiamento das empresas nacionais". Assim, foram fortalecidas as linhas de crédito do BNDES e do Banco do Brasil, e liberados R$ 5 bilhões para a agricultura. Na noite de quinta-feira 2, o Banco Central voltou a reduzir o depósito compulsório dos bancos, o que pode representar a injeção de mais R$ 23,5 bilhões na economia (leia reportagem à pág. 40). Caso a crise mundial se agrave, existem outras medidas em estudo. Mas vale lembrar que dinheiro não nasce em árvore. E o governo Lula pode ser obrigado a cortar gastos e rever o Orçamento para 2009. O ideal é que os americanos consigam reconstruir seu sistema financeiro, sem cair em profunda recessão. O que, para o Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz, parece hipótese remota. "Estamos em meio a uma das piores crises do século e, enquanto não tocarmos o fundo, não poderemos vir à tona." A questão é que, até agora, ninguém sabe ao certo onde acaba esse poço.