16/05/2000 - 10:00
O prédio de seis andares, cravado na entrada da favela de Acari, zona norte do Rio, já fez por merecer o letreiro que está em sua fachada: Fábrica de Esperança. O imóvel, sede de uma indústria, foi doado para transformar-se em 1994 numa das mais importantes Organizações Não-Governamentais (ONGs) do País. Entre cursos profissionalizantes, creche e atendimento médico, chegou a ter 55 projetos sociais graças à parceria com o governo, empresários e outras entidades. A Fábrica de Esperança teve papel fundamental para diminuir a violência na favela de Acari. A sua importância foi reconhecida até pelo presidente Fernando Henrique numa visita ao local logo depois da posse, no seu primeiro mandato. Tudo isso faz parte do passado. Junto com a queda de prestígio de seu coordenador, o pastor Caio Fábio – apontado em 1998 como divulgador do dossiê Cayman, sobre uma suposta conta do alto tucanato num paraíso fiscal –, a Fábrica foi para o buraco. Hoje, há só cinco projetos em andamento, a luz foi cortada e os funcionários estão há nove meses sem salários. Em breve, a entidade será desapropriada pelo governo estadual.
O grande prédio parece abandonado. Salas e corredores estão às escuras, a porta principal foi fechada com correntes, elevadores não funcionam e ratos passeiam pelo pátio. O fraco movimento em nada lembra o antigo ponto de referência para a comunidade, a qual atendia a cerca de dez mil pessoas carentes. Um tempo em que grandes empresas, institutos e fundações estrangeiras investiam um bom dinheiro ali. Nesse cenário desolador, poucos obstinados continuam o trabalho social. Um deles é Jorge Moraes, responsável por um curso de cabeleireiro. Para driblar a falta de energia, Moraes descarta o uso do secador de cabelos e dá aulas bem perto da janela para aproveitar a luz natural. “Quando o dia está escuro, levamos as cadeiras para o pátio”, afirma. Ele ainda enfrenta a falta de água, que depende da energia para ser bombeada. O curso de informática foi interrompido há duas semanas.
Sem salário – Um dos projetos que se mantêm a duras penas é a creche. Com capacidade para 450 crianças, atende a 137 por falta de infra-estrutura. A comida é doada pela prefeitura e a luz é fornecida pelo vizinho Centro de Cidadania do Estado, numa ligação clandestina. O maior problema da coordenadora da creche, Celma Marques, é a falta de pagamento dos funcionários. “Peço alimentos ao comércio. As funcionárias não recebem, mas pelo menos têm uma cesta básica por mês.”
Foto: André Dusek |
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Celma, que cuida da creche, pede a comerciantes que doem comida para as crianças |
O governo estadual decidiu desapropriar o prédio. Em consequência, Caio Fábio deixará de ser o responsável pela entidade. A Secretaria da Criança e do Adolescente se instalaria no local e assumiria os projetos da Fábrica. Desde que foi acusado de divulgar o dossiê Cayman e depois da revelação de um romance extraconjugal com a sua secretária – e atual mulher – o pastor amarga o ostracismo. As polêmicas em que se envolveu afugentaram os parceiros da iniciativa privada e as entidades não-governamentais que apóiam os projetos.
“Por causa da história do dossiê, o governo não aprovou nenhum projeto e deixou de incentivar novos parceiros”, afirma Caio Fábio. O pastor reconhece que a desapropriação é a melhor saída. Mas a negociação não foi tão tranquila. Com desconforto o governador Anthony Garotinho – batizado por Caio Fábio em 1986 na religião evangélica – sentou-se à mesa com o pastor para discutir o assunto. Caio Fábio propôs que o governo estadual assumisse todo o passivo. “Isso é impossível”, descartou Garotinho na reunião. Fora os salários, a Fábrica deve o dinheiro do FGTS, várias taxas e impostos. A dívida ultrapassaria R$ 900 mil.
Sem quadra – Além da inadimplência, pesa contra os antigos administradores a acusação de má gestão de recursos doados por uma ONG americana. A irregularidade teria ocorrido em um projeto de assistência a adolescentes, resultado de uma parceria com a Uerj e a Fundação Kellog’s. A fundação americana aprovou o repasse de US$ 680 mil, que seriam liberados em três anos. Entre os objetivos, estava a construção de uma quadra esportiva. Dois anos após o início do projeto, uma auditoria feita a pedido da Kellog’s constatou que a Fábrica de Esperança gastara o dinheiro sem construir a quadra.
A entidade de Acari foi descredenciada e a equipe da Uerj continuou o trabalho sozinha. “A auditoria de 1999 concluiu que a Fábrica ficou devendo US$ 140 mil à Kellog’s”, conta Maria Helena Ruzany, professora da universidade, hoje coordendora do projeto. “O pastor Caio Fábio dizia que a entidade passava por dificuldades financeiras e por isso era obrigado a gastar o dinheiro em outras áreas”, lembra. Dos 90 funcionários da entidade, apenas 30 permanecem à espera do pagamento dos salários atrasados e da retomada dos projetos sociais. Washington Luiz Couto Lira, gerente financeiro, torce para que a desapropriação seja resolvida logo: “Estamos passando necessidades e a comunidade precisa de nós.”