Sábado à noite – O som ligado anuncia que hoje é dia de rock, mas pode ser de forró, pagode ou frevo. Fica ao gosto do freguês. Enquanto se arruma, João ensaia alguns passos, penteia o cabelo e, por fim, retoca-se com água de cheiro. João tem um encontro. É com José, um rapaz da mesma idade, 23 anos, no bar Mustang, conhecido point gay na avenida Conde de Bela Vista, no coração do Recife. Depois de uns copos e discretos toques, João e José resolvem partir para um local com mais privacidade. Lembraram-se de um trecho da rua Aurora, escuro e protegido por um matagal, às margens do rio Capibaribe. Já passava das duas da manhã quando foram flagrados por quatro PMs do 16º BPM. José conseguiu fugir. João não. Insultos, tapas e pontapés. Sua liberdade tinha um preço: R$ 100, muito além do que poderia pagar. “Ser viado já é uma desonra. Bicha pobre, então, tem mais é que morrer”, ouviu João, certo de que sua vida terminaria numa noite sem luar daquele sábado de março, bem mais quente que o normal. Sem o dinheiro, os policiais optaram por dar um castigo a João: dentro do carro oficial, estupraram o rapaz.

Amaro Júnior, aos 16 anos, estava certo da sua homossexualidade. Mas isso não era o bastante. Queria ser travesti e “fazer pista”, ou seja, prostituiu-se nas ruas. A mãe estava viva e não suportaria o desgosto. Não restava outra coisa senão esperar. Aos 18, Amaro estava livre para assumir sua porção mulher e cair na vida. Não adiantaram os conselhos de Lula, um grande amigo, que, quando a noite cai, se transforma em Cíntia e faz ponto na avenida Mascarenhas de Moraes, uma das principais vias da capital pernambucana. Foi nessa mesma avenida que Amaro fez seu début. Ansioso, esperava por seu primeiro cliente. Por volta das 23h um carro grande pára e dele saem três homens armados com porretes. Amaro foi surrado violentamente. Durante o espancamento, eles gritavam: “Você é uma vergonha para a imagem do homem. Grita até morrer, viado sem vergonha.”

Aquela era mais uma noite para Onildo, cabeleireiro, bombadeira (aplicador de silicone) e travesti. Faltavam quatro dias para o Carnaval e o Recife era pura ferveção. Turista por toda a parte. Bastava, como sempre, um bom salto e um chamativo vestido, para que Onildo desse lugar a Samanta. O sonho era dobrar o faturamento habitual, que em dia bom não passa de R$ 30. Ele conversava no canteiro central da rua Mário Melo, conhecido ponto de travestis, com uma colega de trabalho quando um Fiat verde metálico com quatro homens parou. O vidro foi baixado e nove disparos foram feitos. Onildo sangrava e gritava pela amiga, que conseguira fugir, pedindo socorro. “Galega! Não me deixa morrer.” Mas os homens davam a contra-ordem: “Deixa esse viado sangrar, Galega! Você será a próxima.”
Nestas histórias, de ficção somente alguns nomes. O resto é a dura realidade das ruas do Recife, cidade brasileira que, proporcionalmente à população (1,4 milhão) e ao número de crimes, se torna líder do ranking de assassinatos e agressões contra homossexuais no ano de 1999. De 26 assassinatos contra gays em Pernambuco, 20 aconteceram na capital, registra documento lançado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), feito a partir de noticiário de jornal, uma vez que não existem estatísticas oficiais.

HOMOcídios – João, José, Amaro, Cíntia, Samanta e Galega são vítimas do ódio e do preconceito que imperam na chamada Veneza brasileira. Abrir fogo contra travestis, jogar pedras ou usar extintores de incêndios nas avenidas do sexo ou em points homossexuais é rotina. Os HOMOcídios, como vêm sendo conhecidos esses tipos de crime, servem para pôr o Brasil na condição de campeão mundial de assassinatos a homossexuais. Segundo dados da Anistia Internacional e Associações de Gays e Lésbicas Internacionais, o País pode ser equiparado ao Irã, Sudão, Zimbábue e Iraque, destaques da homofobia mundial. Nesses países, onde existe pena de morte para gays, registram-se menos execuções do que as realizadas na capital do frevo e no País do Carnaval.

“O que leva a esse tipo de crime, que pode chegar à morte ou a lesões físicas e morais é, sem dúvida, o preconceito”, admite a delegada Marta Suelene, gerente de Comunicação da Polícia Civil de Pernambuco. “Na visão do agressor, eles agem contra o que afronta a moral e os bons costumes. Atuam em nome da honra da coletividade. A ação é premeditada”, analisa a delegada. O criminoso, segundo ela, tem idade entre 25 e 45 anos, baixo nível de instrução e quase nunca envolvimento sexual com a vítima.

A delegada não inseriu no rol dos agressores a polícia e os rapazes da classe média que também premeditam seus ataques. “Na Semana Santa, não trabalhamos porque soubemos que um grupo de boys (rapazes de alto poder aquisitivo) circulava num Toyota azul metálico na intenção de sequestrar um travesti para malhar como Judas no Sábado de Aleluia”, contou o travesti Eliana, que se mudou para o Recife há quatro meses a fim de fugir da violência da rua Amaral Gurgel, em São Paulo, Estado que em números absolutos lidera as estatísticas do GGB com 31 homicícios. João é o nome fictício do jovem estuprado pelos quatro policiais. Funcionário de uma grande loja de departamentos, não aceitou dar entrevistas. Por intermédio de um amigo, confirmou a agressão: “Hoje sou um sujeito cheio de medo e vergonha. Não vou conseguir reviver o que passei. Mas ajude-nos no que for possível.”

Luta por respeito – Amaro, agora com 24 anos, desde aquela noite na Mascarenhas de Moares desistiu de ser travesti. É homossexual e trabalha na ONG Os Defensores – Organização dos Direitos dos Homossexuais de Pernambuco, coordenando o departamento de doenças sexualmente transmissíveis. No ano que vem fará vestibular para Letras. “Eu consigo ver a vida sem a pista, por cima do muro do preconceito. Devo o que sou ao Lula (Cíntia) e minha vida, a dois travestis. Eles afugentaram meus agressores. Tive os dois braços e as duas pernas quebradas. Era para matar. Quero ser respeitado e lutar pelo respeito a todos, que, como eu, foram e são vítimas do ódio.”
Depois de madrugadas na rua Mário Melo, avenidas Mascarenhas de Moraes e Boa Viagem, ISTOÉ encontrou Galega, assim chamada pelos matadores de Onildo, por estar loura na época. Com o cabelo já de outra cor, contou que, uma semana após o crime, os quatro homens retornaram ao local e pegaram, por engano, um travesti chamado Gracie. “Só escapei depois de muita luta. Eles tentavam me pôr no carro e diziam: ‘Estudante, chegou sua vez.’” Cabisbaixa, Galega conta que Onildo tinha problemas com a polícia que chantageava e extorquia dinheiro de seus clientes. “Quem estava naquele carro eram policiais, eu reconheci dois deles. A polícia me chamava assim porque eu fazia ponto com um livro em cima do joelho.” Ir à delegacia nem pensar: “Pra quê? Aqui matam gays e travestis por nada. Aqui não somos gente.”

Linchamento – No ano passado, na avenida Mascarenhas de Moraes, foi a vez de Cíntia sentir na pele o preconceito. Três carros e quatro homens armados com barras de ferro, aos gritos de “Pega, pega. Vamos matar essa bicha”, partiram contra o travesti. Um segurança de uma loja impediu o linchamento. Mas no último fim de semana de abril, não teve a mesma sorte: foi ferida por pedras e cocos. “São todos rapazes de classe média alta que fazem isso. Basta olhar os carros.” Cíntia, que nasceu Luiz e é chamado pelos amigos de Lula, tirou da cabeça de Amaro viver da pista, mas admite que se prostitui quando falta trabalho de costureiro ou estilista. Ele exibe seus desenhos e conta orgulhoso já ter atuado como carnavalesco no clube de frevo Vassourinhas, além de confeccionar roupas para as mais tradicionais quadrilhas juninas do Estado.

Na modesta casa na periferia do Recife, Cíntia diz que o preconceito a empurra para as ruas. “Fiz teste para uma grande loja aqui, passei em tudo. Mas deram uma desculpa e não me contrataram.” Quanto à opção pela sexualidade como travesti, o que aconteceu aos 18 anos, resume: “Não me sinto mulher, mas não me sinto homem também. Sou diferente. Será essa minha sentença de morte?” Os travestis Sereia, Márcia Terremoto e o gay Gilson da Silva não conseguiram, como João, Amaro, Cíntia e Galega, sobreviver ao ódio que mata. Sereia e Márcia foram assassinadas em Tamarineira, Casa Amarela, por dois vigilantes. “Iraquitan Correia e Nivaldo da Silva premeditaram o crime e agiram movidos pelo preconceito”, afirma o delegado do caso, Antônio Falcão. “Eles atrapalhavam a gente, não era possível trabalhar. Pediam dinheiro. Eram um nada”, contaram eles para o delegado que, em cinco dias, prendeu os dois.

Em Olinda, o vigilante foi a vítima. Gilson da Silva vivia com o cabeleireiro Dinho há quatro anos. Ele dormia quando dois homens encapuzados invadiram a casa e deram-lhe 14 facadas. A intenção era roubar e matar “o viado”, revelou à polícia S.H.L., 16 anos, referindo-se a Dinho. Ao chegar do salão, o cabeleireiro encontrou os assassinos em sua casa e ainda conseguiu arrancar o capuz de um deles: era Jackson Nego, que está foragido. Dinho exilou-se na casa da mãe. Tem medo e não quer ser testemunha. “Só quero esquecer.”

Classe média gay – Mas não é só a morte que assombra os gays no Recife. O preconceito se veste e se traveste de várias formas. Sidcley dos Santos, 24 anos, e seu primo Eduardo José dos Santos, 20 anos, travesti, foram impedidos de se matricular na escola estadual Murilo Braga, em Cavaleiro, por serem homossexuais. Sidcley, coreógrafo e bailarino, conta que a diretora, Mércia Almeida, alegou que “a escola era para estudantes normais”. Mércia nega e argumenta que os estudantes não tinham número de matrícula e foram para a escola em trajes inadequados: “Bustiê e shorts curtíssimos.” Os dois desmentem Mércia, mas ficarão fora da escola até o caso ser decidido pela Justiça.

Mas é com a força da grana que os gays das classes média e média alta conseguem escamotear o preconceito e ter um pouco mais de liberdade. É possível começar o dia na praia em Boa Viagem, em frente ao hotel Savayone, um point onde os ambulantes fincaram na areia duas bandeiras com o arco-íris, símbolo gay. À noite, a opção é circular e azarar em Bom Jesus, no Recife antigo. Uma via repleta de bares e gente de todas as orientações. Mais tarde e bem perto dali a opção é dar pulo na Cats. Boate GLS, moderna, com capacidade para 300 pessoas. Ela substituiu a Doutor Froid, que não assumia a condição gay para não espantar os frequentadores enrustidos, que mantêm trancada sua sexualidade no armário, a fim de preservar os valores da tradicional família pernambucana.

Na Cats, o babado é outro. São quatro andares e uma sala totalmente escura (dark room), no último piso, onde se pode entrar só ou acompanhado. Vale tudo. Willian Batista, sócio da Cats, que fatura R$ 40 mil por mês abrindo a casa apenas duas vezes por semana, confirma a fama homofóbica da cidade e admite que trabalha voltado para “um público elitizado, que paga pela sua privacidade”. Essa é a mesma justificativa para explicar o funcionamento a todo vapor de cinco saunas masculinas no Recife. Mas quem define o outro lado do arco-íris é R., um garoto de programa que trabalha em uma dessas saunas: “Vivemos numa cidade machista, nordestina, mas aqui os Lampiões frequentam as saunas, usam garotos de programa e saem com travestis. São casados e, muitos, pais daqueles que por ódio e diversão disparam suas armas contra nós.”

Em Olinda, o vigilante foi a vítima. Gilson da Silva vivia com o cabeleireiro Dinho há quatro anos. Ele dormia quando dois homens encapuzados invadiram a casa e deram-lhe 14 facadas. A intenção era roubar e matar “o viado”, revelou à polícia S.H.L., 16 anos, referindo-se a Dinho. Ao chegar do salão, o cabeleireiro encontrou os assassinos em sua casa e ainda conseguiu arrancar o capuz de um deles: era Jackson Nego, que está foragido. Dinho exilou-se na casa da mãe. Tem medo e não quer ser testemunha. “Só quero esquecer.”

Classe média gay – Mas não é só a morte que assombra os gays no Recife. O preconceito se veste e se traveste de várias formas. Sidcley dos Santos, 24 anos, e seu primo Eduardo José dos Santos, 20 anos, travesti, foram impedidos de se matricular na escola estadual Murilo Braga, em Cavaleiro, por serem homossexuais. Sidcley, coreógrafo e bailarino, conta que a diretora, Mércia Almeida, alegou que “a escola era para estudantes normais”. Mércia nega e argumenta que os estudantes não tinham número de matrícula e foram para a escola em trajes inadequados: “Bustiê e shorts curtíssimos.” Os dois desmentem Mércia, mas ficarão fora da escola até o caso ser decidido pela Justiça.

Mas é com a força da grana que os gays das classes média e média alta conseguem escamotear o preconceito e ter um pouco mais de liberdade. É possível começar o dia na praia em Boa Viagem, em frente ao hotel Savayone, um point onde os ambulantes fincaram na areia duas bandeiras com o arco-íris, símbolo gay. À noite, a opção é circular e azarar em Bom Jesus, no Recife antigo. Uma via repleta de bares e gente de todas as orientações. Mais tarde e bem perto dali a opção é dar pulo na Cats. Boate GLS, moderna, com capacidade para 300 pessoas. Ela substituiu a Doutor Froid, que não assumia a condição gay para não espantar os frequentadores enrustidos, que mantêm trancada sua sexualidade no armário, a fim de preservar os valores da tradicional família pernambucana.

Na Cats, o babado é outro. São quatro andares e uma sala totalmente escura (dark room), no último piso, onde se pode entrar só ou acompanhado. Vale tudo. Willian Batista, sócio da Cats, que fatura R$ 40 mil por mês abrindo a casa apenas duas vezes por semana, confirma a fama homofóbica da cidade e admite que trabalha voltado para “um público elitizado, que paga pela sua privacidade”. Essa é a mesma justificativa para explicar o funcionamento a todo vapor de cinco saunas masculinas no Recife. Mas quem define o outro lado do arco-íris é R., um garoto de programa que trabalha em uma dessas saunas: “Vivemos numa cidade machista, nordestina, mas aqui os Lampiões frequentam as saunas, usam garotos de programa e saem com travestis. São casados e, muitos, pais daqueles que por ódio e diversão disparam suas armas contra nós.”

Delegacia antidiscriminação

Quando o chefe da Polícia Civil Manoel Carneiro designou um delegado especial para investigar a morte do travesti Sayonara, que teve grande repercussão no Recife, Pernambuco avançava em direção à criação de uma delegacia inédita no País: de antidiscriminação. A delegacia ainda não funciona, mas já agrada ao GGB e aos Defensores.

“Antes de institucionalizar o projeto, estamos nos reunindo com vários grupos para adaptar essa delegacia às necessidades do cidadão”, ressalta Manoel Carneiro que considera a criminalidade no segundo Estado mais violento do Brasil “conjuntural, que não difere do resto do País”. “Se não tivessem essa delegacia entraríamos com uma ação de responsabilidade contra o governo pernambucano. O que acontece aqui é inacreditável. No Brejo da Madre de Deus, município do interior, três rapazes, dois de 15 e um de 17 anos foram assassinados por serem gays e o delegado local justificou as mortes dizendo que eles chamavam muita atenção e perturbavam a ética”, afirmou Marcelo Cerqueira, coordenador do GGB.

Marcelo chama atenção para a tipificação dos crimes contra homossexuais no Recife. Mais de 60% são vítimas de arma de fogo e seus algozes não são garotos de programa, como acontece no Rio e em São Paulo. “Em 1999 morreram 169 homossexuais em todo o País, 24% a mais do que no ano anterior, e a polícia só consegue resolver 3% dos casos.”