Durante os últimos 20 anos, sob a presidência do controvertido Eduardo Viana, a Federação de Futebol do Rio de Janeiro foi alvo de várias denúncias de desmandos e corrupção. Alguns inquéritos foram instaurados, muitas investigações feitas e uma CPI na Assembléia Legislativa ocupou-se da entidade, sem chegar à condenação de Viana, conhecido como “Caixa D’água”, e sua diretoria. Em outubro do ano passado, o Ministério Público estadual conseguiu que o juiz da 37ª Vara Criminal determinasse o afastamento do presidente e de mais cinco diretores da federação por suspeita de evasão de renda. Parecia mesmo uma ação moralizadora. Agora, no entanto, os diretores afastados chegaram a sérios indícios de que a ofensiva do MP – ou pelo menos de parte dele – está cercada de fatos que passam longe da moralidade. Em ação penal que corre no Órgão Especial, acusam o promotor Alexandre Themístocles de Vasconcelos de atuar contra a federação por vingança pessoal. Alexandre e seu pai, Francisco Vasconcelos – conhecido como Chicão –, foram diretores do Fluminense, se desentenderam com dirigentes do clube e teriam prometido represálias. Na quarta-feira antes do Carnaval, 1º de fevereiro, o vice-presidente afastado da federação, Francisco Aguiar, deparou com algo ainda pior que simples vingança. Em um encontro na churrascaria Stylus, o pai do promotor pediu a Aguiar R$ 200 mil para ajudá-lo no processo, valor que acabou reduzindo para R$ 150 mil em três parcelas. “É 90% que eu vou tirar você”, prometeu. Muito à vontade, Chicão revelou um esquema em que se vale do poder do filho e do MP do Rio como arma para extorquir um acusado. O que o ex-diretor do Fluminense não sabia é que a conversa cabeluda foi gravada por Aguiar em fita de áudio e vídeo. A gravação foi entregue ao perito Ricardo Molina, que constatou a autenticidade da fita.

O péssimo conceito que a federação – Caixa D’água em especial – goza junto à opinião pública, por conta de vários imbróglios e da decadência do futebol do Rio, certamente facilitou a atuação do Ministério Público. Mas o anunciado objetivo de combater ilegalidades pode ter servido a um esquema em que o menor dos pecados seria a vingança pessoal denunciada pelos diretores afastados. Tudo parece ter começado há três anos, quando, depois de um bate-boca sobre futebol no Maracanã, o promotor Alexandre, que atuava como representante do Fluminense junto à federação, teria ameaçado Aguiar na frente de testemunhas. Pouco depois, Alexandre passaria a atuar no juizado que fiscaliza a arrecadação do Maracanã. “Começou ali uma perseguição”, diz Aguiar. Depois de um ano e seis meses de investigações, o MP acabou por concluir que houve desvio de arrecadação entre março e setembro de 2003. “O promotor Alexandre Vasconcelos está sendo processado por abuso de poder e prevaricação. O processo é nulo desde o nascedouro”, diz o advogado de Aguiar, Mario Cury Filho.

Encontro – O pior é a forma como o pai do promotor se vale das prerrogativas de seu filho, membro do Ministério Público estadual, órgão normalmente associado à eficiência no combate aos corruptos e criminosos. Através de um emissário, Aguiar foi chamado a encontrar-se em um restaurante com Chicão, que “resolveria” para ele os problemas do processo. A conversa – testemunhada pelos ex-jogadores Badu, do São Cristóvão, e Robson, do Botafogo – não deixa espaço para dúvidas: dizendo agir com o conhecimento do filho, ele pediu dinheiro para melhorar a situação de Aguiar no processo. “Você falou com seu filho, naturalmente…”, questiona Aguiar. “Claro, eu falei com ele, entendeu?”, confirma Chicão. Em vários outros trechos da conversa, reafirma que age em consonância com o filho. Para dar mostras de seu poder, ele diz que tirou “o Nilson, que ia ser denunciado” – estaria se referindo ao diretor da federação Nilson Mattos, que entrou no processo apenas como testemunha. Mais à frente, diz que “quem faz as denúncias são (sic) o Alexandre” e que a promotora Márcia Velasco, que encaminhou a acusação, só assina o documento.

No momento em que Aguiar pergunta quanto terá de pagar, Chicão estipula: “Deixa eu te falar: nós estamos trabalhando em cima de R$ 200 mil.” Em seguida, Aguiar pede que o valor seja reduzido e parcelado, e o interlocutor concede: “R$ 150 mil.” Parcelados em três pagamentos de R$ 50 mil, em dinheiro. Uma exigência é que a primeira parcela fosse paga até a sexta-feira anterior ao Carnaval. Depois de fechado o acordo, Chicão promete adiar a próxima audiência (que estava marcada para o início de fevereiro e acabou realmente adiada: foi realizada apenas na quarta-feira 2) e garante efeitos imediatos: “Amanhã você já vai ter que ser tratado de outra maneira.” Desde então, os dois não mais se viram. “Chicão tem telefonado várias vezes para minha casa, mas eu não atendo”, afirma Aguiar. O vice-presidente afastado afirma que já tinha recebido de um intermediário de Chicão uma proposta anterior para um encontro parecido, mas recusou-se a ir.

Chicão, 57 anos, atuou como diretor do Fluminense até o ano passado. É um personagem misterioso, poucos conhecem exatamente seu ramo de atuação profissional. Sabe-se apenas que se aposentou como autônomo. Era supervisor de futebol em 2003, quando a modelo Cristina Mortágua, então casada com o jogador Djair, afirmou que era comum no Fluminense a oferta de amantes em dias de concentração e em viagens. Sua estatura inspira o superlativo de seu apelido e seu estilo é truculento: já discutiu com repórteres e um cinegrafista de tevê. Também se desentendeu com torcedores. Não é a primeira vez que mostra estranha intimidade com o MP. Numa ocorrência registrada na 9ª Delegacia Policial, na qual se disse ameaçado de agressão por outro diretor do Fluminense, em outubro de 2003, no campo do questionário referente a “outro tipo de endereço”, Chicão dá como referência a “avenida Marechal Câmara, 370, 2º andar, Centro”. É o endereço do Ministério Público. Procurado por ISTOÉ através da assessoria de imprensa do MP, o promotor Alexandre Vasconcelos não quis comentar o assunto. A promotora Márcia Velasco, também através da assessoria, afirmou que “o fato de o doutor Alexandre ser parente de um diretor de futebol não tem relação com o caso porque ele não teve influência no afastamento dos diretores da federação”.

Investigação – Francisco Vasconcelos não foi encontrado pela reportagem de ISTOÉ para responder às acusações. Depois de vários telefonemas, a reportagem esteve no prédio onde Chicão mora, em Laranjeiras, mas o porteiro disse que ele não estava. O processo contra os diretores da federação continua e o fato de Aguiar ter sido vítima de uma tentativa de extorsão não os inocenta. Se for verdade metade das acusações feitas a esses cartolas durante as duas décadas em que estiveram no poder, há realmente muito a apurar. Mas, paralelamente, a atuação do pai do promotor Alexandre Vasconcelos deve merecer investigação igualmente rigorosa, para livrar o MP da suspeição capaz de embaraçá-lo neste e em outros casos.

Fora do jogo: em outubro do ano passado, o MP do Rio conseguiu que a Justiça afastasse o presidente da Federação de Futebol do Rio, Eduardo Viana, e mais cinco diretores da entidade por suspeita de evasão de renda