Polícia para os pataxós, polícia para os sem-terra e, daqui para a frente, polícia para todos os que são do contra. “Chega! Isso é inadmissível”, explodiu o presidente Fernando Henrique Cardoso, na terça-feira 2, ao saber que os caminhoneiros e o Movimento dos Sem-Terra tomaram o País com protestos que fechavam as estradas e ocupavam prédios públicos. O mau humor aumentou quando FHC soube que a popularidade de seu governo na pesquisa CNT/Vox Populi caiu de 16% em março para 14% em abril, com 51% dos brasileiros considerando seu governo péssimo. A nova face foi mostrada durante as comemorações dos 500 anos, quando a polícia usou cassetetes e bombas de gás para barrar os índios e o MST. As trapalhadas do governo quando o assunto é negociação criam dificuldades para o cumprimento de dois preceitos constitucionais: a manutenção da ordem e a preservação do direito democrático às manifestações. Um dia antes de os sem-terra porem o bloco na rua, veio a greve dos caminhoneiros com a antiga reivindicação de ter desconto nos pedágios. O governo, ao contrário do rigor adotado contra os sem-terra, enfrentou com paciência a possibilidade de desabastecimento em mercados e postos de gasolina em todo o País. Os caminhoneiros não têm coloração partidária e fazem parte de organizações diferentes do MST. Apesar dos piquetes violentos, obrigando a categoria a aderir à greve na marra, ninguém foi preso. O Ministério dos Transportes entrou em ação para negociar, mas rachou o movimento ao não chamar um dos principais líderes da greve, Nélio Botelho, conhecido como o xiita das estradas. Preferiu o presidente da Federação Interestadual de Caminhoneiros Autônomos, José Fonseca Lopes. A polícia só não entrou em cena para liberar as estradas porque Fonseca posou para fotos ao lado de seis ministros e empresários e pediu aos companheiros de boléia que voltassem a rodar nas estradas. Eles ficam livres do pedágio por uma semana e a partir do dia 11 entra em vigor o vale-pedágio, uma mal-explicada promissória que, em tese, passa para as empresas a obrigação de pagar o pedágio.

Velha tática – Enquanto isso, o grito por mudanças no modelo econômico e por créditos agrícolas a fim de manter a produção nos assentamentos ganhava força. O MST usou da velha tática: ocupar prédios públicos. A diferença foi a ação simultânea em 18 Estados e a reação do governo. Para desocupar os prédios, os sem-terra exigiam negociar somente com os Pedros (Malan ou Parente), dois ministros de prestígio. A resposta do Planalto foi rápida. Chamou o general Alberto Cardoso, ameaçou pôr o Exército na rua e de quebra passou o encargo da negociação para José e Raul (Gregori, da Justiça, e Jungmann, do Desenvolvimento Agrário), que, na opinião das lideranças, não resolvem o problema. Mas foram Gregori, Jungmann e Aloysio Nunes Ferreira, secretário-geral da Presidência, que, no fim da noite de quinta-feira 4, anunciaram um duro pacote de decisões para atrasar a desapropriação e coibir as ocupações de terra. O ato prevê ainda a criação na Polícia Federal de uma divisão de conflitos fundiários. As terras invadidas só serão vistoriadas para fins de desapropriação após dois anos da data da desocupação.

A onda de protestos que explodiu na semana passada – engrossada por fiscais da Receita, servidores federais e professores da rede pública –, expõe o desgaste do governo, assusta a classe política e acende a luz vermelha. Para FHC trata-se de “atentados” que põem em risco o Estado de Direito e a democracia. No Planalto, o que mais se ouviu é que o MST “prega a revolução”, “que é um movimento fundamentalista”, justificativas para a repressão ao protesto. A ação policial contra as manifestações, a falta de traquejo nas negociações e a decisão do MST de subir um tom nas ações fizeram a hora da radicalização.

“Reforma agrária não pode ser caso de polícia, muito menos de Exército. É uma decisão política”, adverte Jaime Amorim, da coordenação nacional do MST. As relações do governo com o movimento depois das ocupações aos prédios públicos chegaram no limite, respondem assessores próximos de FHC. E é em nome desse limite que o governo está usando a força, pondo mais lenha na fogueira do confronto. Enquanto FHC advertia que a morte do sem-terra Antônio Pereira, no Paraná, é um alerta para “os que optaram pela provocação e pelo desrespeito à democracia”, Gilmar Mauro, líder do MST, reagia: “O nosso povo está com vontade de pegar a foice e sair descendo o cacete.” Na guerra das palavras, Jungmann chegou a comparar a ocupação aos prédios públicos com as práticas dos torturadores: “A busca de conflitos está no DNA do MST.”
A radicalização governo-MST chegou a seu ponto mais alto na quinta-feira, pouco antes de anunciado o pacote linha dura. Os líderes dos sem-terra decidiram deixar as unidades públicas ao terem a informação de que a intenção do governo era militarizar o conflito. Sem alternativas, a desocupação foi a saída encontrada pelo MST para evitar o derramamento de sangue. “O governo está acuado e desgastado. Por isso está cometendo esse erro grave”, condena o presidente nacional do PT, deputado José Dirceu (SP). Quem faz coro às críticas de Dirceu é o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA). ACM responsabilizou o governo pela radicalização do MST. “Não é com repressão… O governo deveria ter chamado o MST quando o movimento ainda era pequeno e dito o que iria e o que não iria fazer. Não fez isso na hora certa e agora o custo é maior.”

Anarquistas – Na outra ponta do cabo de guerra está a fúria ruralista. Ao mesmo tempo que continua defendendo a idéia de impedir as ocupações à bala, a UDR se une ao MST quando faz críticas à política agrária. “Nosso principal inimigo é o governo FHC. Ele governa para os EUA, para o FMI, e não para os brasileiros”, dispara o presidente da UDR, Almir Guedes Soriano (leia à pág. 31). Já o presidente da Associação Brasileira dos Criadores de Zebus, o mineiro Rômulo Kardec de Camargos, cobrou proteção aos fazendeiros. “Quem não defende o que tem não merece tê-lo. Não contamos com o privilégio do Exército, como aconteceu quando tentaram invadir a fazenda de FHC.” Em seguida, pediu um basta “à baderna”: “O exemplo foi dado pela PM do Paraná. Enquadrou os agressores anarquistas.” Passava das 21h58 da terça-feira, 12 horas após o MST e a PM paranaense confrontarem-se com violência na BR-277, quando foi aceso o pavio de um barril de pólvora: a morte de Antônio Tavares Pereira, 38 anos. Ele obteve seu pedaço de chão há 16 anos no assentamento Ilhéus, onde mantinha uma lavoura e criava seus cinco filhos. Mesmo assim, deixou a terra para lutar pela causa que une, segundo o MST, 300 mil pessoas no Paraná.
O enterro do lavrador se transformou em um ato de protesto. Não muito longe dali, um seminário de padres abrigava e cuidava dos feridos, mais de 80, que ainda procuravam por parentes que estariam desaparecidos. André Trevisan, 17 anos, deixou Querência do Norte na expectativa de “ver o Brasil mudar”. Com o rosto e parte do corpo queimados, estava assustado. Desde que entrou para o movimento, há quatro anos, nunca viu nada parecido. Maria Santos Alves, 48 anos, que foi atingida por cinco balas de borracha, lembrou que a caminhada era de paz, mas a polícia não: “De repente, ouvi um estampido. O sangue quente não parava de rolar no meu rosto.

Um policial pôs a arma na minha cabeça e aos gritos disse que iria me estraçalhar. Implorei pela minha vida, pelo meu filho. Mas ele disse que me daria um tiro para que eu não esquecesse dele.”
Em São Paulo, passava das 9h do mesmo dia 2 quando o Ministério da Fazenda foi ocupado por cerca de 300 sem-terra. Mas a PM foi rápida: desocupou o prédio e prendeu em flagrante 14 pessoas. Cumprindo determinação federal de reprimir os protestos, a polícia do governador Mário Covas (PSDB) recrudesceu. O delegado Francisco Missaci autuou em flagrante os manifestantes por danos ao patrimônio público, resistência à ação policial e os enquadrou por crime de formação de quadrilha, que é inafiançável e pertence ao rol dos crimes hediondos. “Todos alegaram que não fizeram nada, mas a perícia foi ao local e constatou que eles quebraram extintores e vidraças”, disse o delegado. Segundo o advogado Aton Fon Filho, “o governo determinou uma política de repressão ao MST, e enquadrar os integrantes no crime de formação de quadrilha vai ser de praxe”.
A capital federal não intimidou a ação do MST. Quatrocentos militantes ocuparam a sede do Incra, em Brasília. A presença de 100 mulheres e 35 crianças, sendo dez bebês, anunciava uma tragédia, caso a polícia decidisse retirar os manifestantes à força. O juiz Carlos Augusto Nobre, da 15a Vara Federal, que proibiu o uso de arma de fogo e recomendou moderação aos policiais, desabafou aos deputados da oposição: “Mostrem a eles que é loucura permanecer no prédio. Mas sei que será uma loucura a polícia entrar à força.

Busquem um acordo”, pediu. “O MST virou bode expiatório do governo, como ocorreu com a greve dos petroleiros em 1995. Com uma diferença: era início de governo e ele estava com um índice de popularidade positivo”, contabilizou Gilmar Mauro. O troco que o MST está preparando é organizar grandes manifestações reunindo todos os segmentos descontentes em atos que se estenderão pelo País. É a reedição do “Fora FHC”.

Pelo social – A suntuosa sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no centro do Rio, não é exatamente um local onde os sem-terra se sentem à vontade. A experiência de acampar dentro do banco foi algo inusitado para os lavradores. Lucinéia dos Santos, que amamentava o seu filho em cima de um cobertor, disse que não gostou do luxo das instalações. Os sem-terra permitiram que os executivos do banco vissem cenas inéditas. Cerca de 300 militantes entraram no prédio e em vez de ocupar o gabinete do presidente, Francisco Gros, preferiram montar acampamento no saguão, onde fixaram duas bandeiras brasileiras e uma do MST. A área próxima a um jardim foi transformada em cozinha. A distribuição de ensopado com farofa, água e café indignou os executivos. “Este não é lugar para isso”, protestou um alto funcionário do banco. Para surpresa geral, a direção do BNDES permitiu o acampamento e mais: liberou os banheiros do térreo para os manifestantes. Apesar de o MST e o BNDES adotarem a política de “coexistência pacífica”, o acampamento teve impacto: nunca os camponeses haviam passado da porta do banco. Naquele dia, o S do BNDES fez sentido.