Sandra Bréa não morreu de Aids. A atriz foi oficialmente vitimada por um câncer no pulmão. Pode-se dizer, entretanto, que não foi só este mal que a derrubou. Antigo símbolo sexual do Brasil, ela acabou isolada do público por causa da intolerância e da falta de solidariedade da própria mídia que a criou, a tevê. Infelizmente, há mais uma terrível agravante no dia-a-dia dos pacientes que sofrem com o preconceito sentido na pele pela atriz. Com medo de se expor no trabalho ou no ambiente familiar, o paciente não cumpre certos horários estabelecidos pelo médico, preferindo esconder os remédios do seu tratamento dos olhos alheios. Dessa forma, a terapia acaba falhando.

Em 1996, quando o coquetel de medicamentos passou a ser usado na rede pública de saúde do Brasil, os pacientes ingeriam até 25 comprimidos por dia. Hoje, os esquemas ainda são complicados de serem seguidos à risca. Na maior parte das vezes, o doente é obrigado a lançar mão de cerca de cinco pílulas pelo menos três vezes por dia. Obviamente, a segunda dose precisa ser tomada à tarde, durante alguma atividade profissional ou social. Por isso, muita gente deixa de lado as drogas previstas para esse horário por temer que seu problema seja descoberto. Ou então busca subterfúgios nada recomendáveis. “Atendemos o caso de uma secretária que passou a engolir os comprimidos a seco. Ela se apavorava com a idéia de que os colegas observassem quantas vezes teria de tomar água”, lembra a psicóloga Elizabete Franco Cruz, do Grupo de Incentivo à Vida (GIV), entidade de assistência a portadores do vírus da Aids.

Engenhosidade – Não são poucas as histórias do gênero a acontecer no Brasil. O pior é que episódios como esse acabam trazendo prejuízos reais à terapia. “O preconceito afeta o tratamento”, diz Amilcar Tanuri, virologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nos consultórios, é significativo o número de pessoas que apresentam resistência a alguma droga em função da dificuldade de seguir a rotina de medicamentos. Essa resistência envolve um processo engenhoso do HIV. Explica-se. Os medicamentos agem sobre os chamados vírus silvestres (a forma original), que são sensíveis à ação química. Mas existem microorganismos que se transformam e fogem do alcance das drogas. Eles se escondem em locais onde o coquetel não atua. Quando se interrompe a terapia ou não se segue o tratamento como se deveria, esses vírus saem da espreita e voltam a se multiplicar. Com a vantagem de serem imunes aos remédios.

Combater a resistência do HIV é um desafio urgente a ser vencido. Não só pelos pacientes que apresentam problemas há algum tempo, mas também porque se observa que muita gente está sendo infectada por vírus já resistentes (leia quadro). Pesquisas nessa área estão se multiplicando e se vislumbram algumas soluções. Uma das estratégias tomadas é a adoção de novas combinações entre as drogas disponíveis (15 no total). Um remédio pode potencializar a ação do outro, estendendo o efeito das substâncias por um período mais longo. “Portanto, em vez de obrigar o paciente a ingerir os medicamentos de oito em oito horas, por exemplo, é possível ampliar esse intervalo para 12 horas”, explica o infectologista Adauto Castelo Filho, professor-adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Essa estratégia facilita a adesão do paciente ao tratamento, uma vez que ele pode tomar os comprimidos em casa, além de o esquema ser muito mais prático. Outro caminho é o surgimento de drogas contra as quais o vírus ainda não conseguiu desenvolver resistência. É o caso do ABT 378 (da Abott), que deve ser lançado no final do ano. “Até agora nenhum HIV mostrou resistência a esse remédio”, diz o infectologista Caio Rosenthal, do Instituto Emílio Ribas, de São Paulo. Ele tem mais uma vantagem: pode ser tomado duas vezes ao dia.

No Brasil, as ações para tratar do problema devem começar a partir deste mês, com um projeto do Ministério da Saúde de mapeamento da transmissão da doença por microorganismos mutantes. “Vamos colher amostras para saber quantas pessoas recém-infectadas já apresentam vírus resistentes”, conta Tanuri, coordenador do programa. Esse tipo de detalhamento orientará melhor as terapias, já que o médico poderá definir o remédio mais eficaz para o paciente. Além disso, o Ministério pretende habilitar, a partir de agosto, 12 laboratórios para fornecer testes para medir a tolerância do HIV aos componentes do coquetel. “Com remédios mais adequados, os objetivos do tratamento ficam mais realistas”, afirma Ricardo Diaz, diretor do laboratório de retrovirologia da Unifesp. Inspirada em projeto alemão, a universidade está desenvolvendo um trabalho experimental para avaliar se a suspensão de medicamentos por um determinado período pode levar o microorganismo a retomar seu estado original, recuperando a sensibilidade ao coquetel. A explicação para esse fenômeno é compreensível. Na forma original, o vírus se multiplica mais facilmente. Sem a ação dos medicamentos, o HIV retorna, então, muito espertamente, ao estado silvestre.

No estudo conduzido por Diaz, de 33 pacientes que ficaram 12 semanas sem ingerir comprimidos, apenas três não voltaram a ter vírus silvestres. Mas ainda é cedo para cantar vitórias. Segundo Tanuri, a proposta, conhecida como drug holidays (férias de medicação), necessita de mais estudos. “Mesmo com o problema da resistência, é fundamental continuar usando o medicamento”, alerta o virologista.
Não é apenas a tolerância do vírus aos medicamentos que está no foco da ciência. Pesquisadores lutam para encontrar novas categorias de remédios para atacar o HIV em outras frentes. Nessa batalha estão inseridos os inibidores de fusão, que modificam proteínas do HIV para impedir que ele invada a célula. É mais uma maneira de bloquear a multiplicação do perigoso microorganismo no corpo. Na guerra contra a Aids, a medicina continua com força máxima e avança cada vez mais na busca de soluções mais práticas e acessíveis aos doentes. Resta mesmo combater com mais afinco o persistente vírus do preconceito.

A tragédia africana
África é um continente imenso e infeliz. Dos 30 milhões de pessoas infectadas pela Aids no planeta, 20 milhões concentram-se lá. A cada minuto, 11 africanos se contaminam. O infectologista sul-africano Keith Klugman, 43 anos, não esconde o pessimismo. Diretor do South African Institute for Medicine Research, centro de pesquisas em Johannesburgo, ele afirma que a Aids matará mais na África nos próximos dez anos do que qualquer guerra.

Istoé – Muitos bebês africanos nascem infectados pelo HIV?
Keith Klugman – Sim. Estamos diante de um problema gravíssimo. É sabido que tratar as mães com drogas antivírus inibe a replicação e diminui a transmissão para o feto, mas esses medicamentos não estão disponíveis na África porque são muito caros. Estamos estudando adicionais com menos doses, o que reduziria o custo.

Istoé
– O que faz a comunidade internacional?
Klugman – Nos próximos dez anos, a Aids extinguirá mais vidas na África do que qualquer guerra. O que acontece aqui não repercute nos países ricos.

Istoé
– Por que a África concentra os maiores índices de mortalidade?
Klugman – A Aids está na África há muito tempo e há problemas ligados à organização social. A maioria dos homens africanos tem mais de uma mulher ou parceira sexual. Entre os heterossexuais, a transmissão se dá, principalmente, pelo sexo com prostitutas, que não recusam o sexo sem proteção. As campanhas de prevenção também encontram obstáculos. Grupos radicais não querem sequer orientar sexualmente as crianças. Tudo por causa da religião. Na África do Sul, essa é a maior barreira.

Istoé
– Que recursos públicos se destinam ao combate da Aids?
Klugman – Os governos não a tratam como prioridade. Em Uganda, o governo tem negado AZT para mulheres grávidas. É difícil explicar a uma mãe que ela não pode salvar seu bebê porque o remédio custa caro.

Istoé
– O que os africanos esperam do futuro?
Klugman – A única esperança é investir na educação dos jovens. A longo prazo, acredito que a situação irá exigir uma vacina. O problema é que a maioria das vacinas procura controlar o vírus tipo B, e na África temos o tipo C, que é muito mais agressivo. Pela primeira vez, estamos começando experiências para testar e até fabricar nossas vacinas. Além disso, não podemos esquecer que salvar os bebês implica dizer que haverá milhões de órfãos. Quem vai inseri-los na sociedade?

Istoé
– A situação na África está fora de controle?
Klugman – Sim. Há dez anos, avisamos o governo que a Aids provocaria um desastre. O Ministério da Saúde não fez nenhum esforço para frear a doença. Hoje, temos cinco milhões de sul-africanos contaminados e nada pode parar a disseminação da doença. Sinto-me deprimido porque não podemos dar o melhor tratamento aos doentes. É uma tragédia.
Valéria Propato – Johannesburgo