09/03/2005 - 10:00
Uma semana depois que a reportagem de ISTOÉ mostrou a trágica saga dos imigrantes brasileiros para atravessar o deserto do México e chegar aos Estados Unidos, na qual muitos morrem no anonimato, sem jamais ser identificados, o senador Marcelo Crivella (PL-RJ) anunciou que vai pedir a instalação, em regime de urgência, de uma CPI para investigar o tráfico de brasileiros para os EUA. A medida tem o apoio do governo, segundo informou a ISTOÉ o secretário nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda. O senador Crivella, que é presidente da Subcomissão Permanente de Proteção dos Brasileiros no Exterior, examinou o site do movimento paramilitar americano Minuteman Project, que hostiliza imigrantes e prega uma ofensiva contra quem se aventura a atravessar o deserto do Arizona, e concluiu: “São palavras de ordem que beiram o fascismo. Aquela região é um barril de pólvora e alguma providência precisa ser tomada.” Crivella, que em duas viagens aos Estados Unidos conseguiu a libertação de 1,4 mil brasileiros presos na tentativa de atravessar ilegalmente a fronteira, suspeita que exista uma verdadeira indústria em torno da migração ilegal para aquele país. Os agenciadores no Brasil atraem todo tipo de gente, inclusive velhos e mães com crianças, certamente incapazes de suportar as condições subumanas da travessia clandestina organizada pelos “coiotes”, os traficantes de seres humanos.
Crivella e o presidente da Comissão de Relações Exteriores, senador Cristóvam Buarque (PT-DF), deverão ter um encontro nos próximos dias com o embaixador americano no Brasil, John Danilovich. Um dos objetivos de Crivella é demonstrar a preocupação com a ameaça que o Minuteman Project representa. Ele também enviou uma carta ao Ministério das Relações Exteriores pedindo providências do governo americano para tentar coibir a ação deste e de outros grupos xenófobos semelhantes. Cristóvam Buarque afirma que a ação de grupos como o Minuteman e a morte de brasileiros precisam ser debatidas. “Deve-se, de um lado, combater os grupos nazistas e, de outro, pensar em uma solução global para amparar as populações pobres, evitando migrações dessa magnitude”, avalia.
Nesta semana também veio à tona, pela primeira vez, a identidade de um brasileiro clandestino morto na tentativa de atravessar o deserto: Wendell Jonatas Pereira, 23 anos. Conhecido como Dudu, ex-locutor do carro de som da Prefeitura de São Félix de Minas, a 87 quilômetros de Governador Valadares, saiu da cidade na véspera do último Natal. Ele foi o primeiro a deixar de ser um John Doe (joão ninguém), designação dada pelas autoridades aos que morrem sem ser identificados. Há um mês, Dudu foi enterrado na quadra 43, seção 4, da 3200 N Meadow Ave, na linha 19, cova 52 do City Cemetery de Laredo, Estado do Texas. “Cerca de 140 pessoas enterradas aqui no último ano são John Doe”, diz Rosaria López, que há quatro anos trabalha no cemitério.
Os familiares de Wendell dizem que ele emigrou com a intenção de juntar umas economias e voltar para se casar com a jovem Gislaine. Dudu, assim como outros 250 desconhecidos cujos corpos estão espalhados por outros oito cemitérios da cidade de Laredo, fez sua travessia para os EUA a nado, através do famoso rio Grande, no Texas. O corpo do jovem foi encontrado abandonado e sem nenhuma identificação. Investigações apontam que a documentação do mineiro foi roubada pelo “coiote” que o levou. Outro dado já comprovado pela família é que o coiote pertence a uma máfia que se ramifica desde Minas Gerais e é controlada por um importante político mineiro.
A constatação de que se tratava de um cidadão brasileiro foi feita por Michael Wun, da polícia de Laredo. O detetive notou que as roupas usadas por aquela pessoa eram de marcas brasileiras. “Ele ligou aqui no consulado e disse que tinha achado um corpo, sem nome, que, com certeza, era de nosso país”, conta uma funcionária do Itamaraty que prefere não ser identificada. Outra brasileira, amiga da família, que ajudou no acompanhamento do caso ficou sabendo pelo consulado que o jovem trazia uma aliança de noivado no dedo. Com as impressões digitais enviadas pela família ao consulado, confirmou-se que a pessoa enterrada como indigente era Wendell Jonatas Pereira. O problema é que o exame dessas provas aconteceu mais de 15 dias depois do óbito e, por isso, a funerária Nieto Diecke enterrou o corpo por ordem da corte local.
O último contato que Dudu fez com a família foi na noite de 11 de janeiro, doze dias após a travessia. “Ele ligou para a noiva dizendo que necessitava de ajuda médica, pois a asma, que ele tinha desde menino, o estava derrubando”, conta a irmã Weslayne. Preocupada, a família procurou o coiote brasileiro para reclamar da situação aflitiva que Dudu estava vivendo. Foi quando um político ligado ao tráfico de gente telefonou para o comparsa mexicano para saber mais detalhes sobre seu cliente. “Ele nos tranquilizou naquele momento dizendo que ordenara ‘ao sócio’ que levasse o rapaz a um hospital”, relata o pai, José Vanderlício. “Na noite em que morreu, Dudu ligou para a noiva, Gislaine dizendo que precisava de socorro urgente”, lembra Weslayne. Segundo a irmã, no último telefonema ao Brasil, por volta das 20h30 (horário de Brasília), ele teve que desligar pois o coiote que o levaria ao hospital teria chegado. Duas horas depois, seu corpo foi encontrado pela polícia americana. Desde então, a família Pereira vem deseperadamente tentando repatriar o corpo do rapaz. O consulado garante que não pode fazer nada. A encarregada da funerária americana, um pouco mais otimista, acredita que tudo estará resolvido em seis meses. Isso, é claro, se a família fizer um depósito de US$ 10 mil. Quantia impossível de ser paga pelos Pereiras, que vivem da aposentadoria mensal, de
R$ 690, de José Vanderlício. “Não sei nem como vou fazer para pagar a conta do telefone que deverá ser uns dois mil reais este mês”, calcula o pai de Dudu.
Reação – No final do ano passado, o governo americano desenvolveu uma campanha publicitária junto aos mexicanos sobre as mortes ocorridas no deserto. “Temos todo o interesse em desenvolver campanhas idênticas com o Brasil”, diz Andy Adame, chefe de informação da Border Patrol, a polícia de fronteira dos EUA. “O que nos falta é uma sinalização de interesse por parte do governo brasileiro em atacar os males que têm vitimado tantas pessoas no deserto”, diz o policial. A americana Michele Bryan, da Organização Mensageiro do Amor, vai além. “O governo brasileiro tem poder político, em nome de seus filhos, para negociar com o governo Bush melhores condições para esses imigrantes”, alerta. A ativista diz que mortes de imigrantes ilegais viraram rotina em seu país e poderiam ser evitadas apenas com informação para que as pessoas não acreditem nas promessas desses traficantes de gente. “Quando alguém adoece na travessia, quem os mata é próprio coiote”, denuncia Michele. “O imigrante tem que saber que os coiotes não levam ninguém para os hospitais. Pior ainda, muitos hospitais não recebem imigrantes sem documentos”, diz.