09/03/2005 - 10:00
Foram horas de discussão, com dezenas de deputados se revezando nos microfones. Finalmente, depois de duas votações, a Câmara dos Deputados aprovou a Lei de Biossegurança que libera a utilização de embriões humanos na pesquisa com células-tronco. A decisão, que coloca o País entre aqueles de legislação mais avançada do mundo neste campo de pesquisa científica, foi saudada com entusiasmo pelos deputados e, principalmente, por um aguerrido grupo de manifestantes portadores de algum tipo de deficiência física que os prende a cadeiras de rodas. “E Galileu não foi queimado”, comemorava o advogado Caio Rodrigues, 40 anos, paraplégico há 18 depois de um acidente. Ele se referia ao processo da Inquisição contra Galileu Galilei só porque ele ousou afirmar que a Terra não era o centro do universo e se movia em torno do Sol. O acidente não impediu que Caio seguisse uma brilhante carreira que o levou a ser um dos advogados lotados na Presidência da República. “A pesquisa com células-tronco poderá, no futuro, melhorar minha qualidade de vida. Mas não é isso que importa. Há gente, como essas crianças com distrofia muscular (doença que causa fraqueza dos músculos mais próximos do tronco), que são a prioridade, assim como outros com doenças hoje incuráveis”, garante.
O advogado não era o único emocionado com o resultado que abre infinitas portas para a ciência brasileira. A cientista gaúcha Patrícia Pranke – uma loura com tipo de top model –, considerada uma das maiores especialistas do País em doenças hematológicas, já se preparava para uma nova fase de seu trabalho, buscando salvar ainda mais vidas. “Temos muito a aprender com as células embrionárias. Descobrir como, quais os fatores que as levam a se tornar todo tipo de célula. E esperamos chegar à cura de muitas doenças”, festejava. Fugindo da imprensa, Marisa Moreira Salles, depois de cantar o Hino Nacional em plena Câmara, reconhecia que o marido, o banqueiro Pedro Moreira Salles, do Unibanco, merecia ser considerado um vencedor. Pedro tem distrofia muscular e, em vez de buscar tratamento no Exterior, usou os vastos recursos da família para bancar ONGs e pesquisas no Brasil. “Somos brasileiros, temos que pensar nesses milhões que sofrem aqui. A aprovação dessa lei dá uma luz de esperança para todos”, afirmou.
Emoção – Empurrando a cadeira de rodas de seu filho Igor Rafael, oito anos, portador de distrofia muscular, Angelita Paes garantia que o uso dos embriões
com no máximo seis dias de vida e congelados há três anos – são cerca de 30 mil em clínicas de inseminação artificial em todo o País prestes a serem jogados no lixo – não representará a morte de um ser vivo. “Vai ser como um, dois, vários transplantes feitos a partir de um doador que não chegou a existir. E eles viverão, se Deus quiser, em meu filho e em milhões de outros doentes no Brasil”, garantia, enquanto o filho ria e dizia “ganhamos, ganhamos”. Outro símbolo da luta dos deficientes, a bela Mara Gabrilli, 37 anos, que sofreu fratura de duas vértebras do pescoço em um acidente de carro há oito anos, era saudada pelos demais manifestantes como uma das líderes do movimento. “Os vencedores são os cientistas que se empenham na busca de uma cura para doenças como diabete, mal de Parkinson, paralisia. São essas crianças que passam a ter esperança de crescer. Para mim, se for encontrada a cura para lesões medulares, será simplesmente melhorar minha qualidade de vida. Porque eu já sou útil à sociedade”, afirma Mara, que pela primeira vez assumiu uma função pública, à frente da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo.
Do lado do governo, entusiasmo por parte do ministro da Ciência e Tecnologia, Eduardo Campos. Depois de ter passado a quarta-feira 2 na Câmara ajudando a convencer deputados e, principalmente, a dobrar o novo presidente, Severino Cavalcanti, que era contra o projeto, a deixar a votação acontecer, o ministro anunciou que os investimentos em pesquisa poderão receber recursos, ainda este ano, de até R$ 100 milhões. “Temos de ver que linhas de crédito e de investimento podem ser acionadas”, garantiu. O Ministério da Saúde também se prepara para injetar R$ 57 milhões na pesquisa com células-tronco, por meio de diversos programas já autorizados pelo ministro Humberto Costa.
Na opinião do cientista Ricardo Ribeiro dos Santos, da Fiocruz de Salvador, a liberação do uso de embriões humanos complementará as pesquisas já em andamento no País. E elas são muitas. No Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro, e no Instituto do Coração, em São Paulo, por exemplo, seguem promissores experimentos com células-tronco para recuperar o coração. No Hospital Albert Einstein, também em São Paulo, estudos são feitos para diabete e esclerose múltipla. Em todos os trabalhos, as células usadas são retiradas de cordão umbilical ou de medula óssea. Só agora é que os centros de pesquisa poderão ter acesso às células extraídas de embriões, as únicas com potencial para se transformar em qualquer um dos 216 tecidos do corpo humano.
A aprovação do uso dessas estruturas coloca o Brasil na vanguarda das pesquisas. Poucos países, entre eles a Inglaterra e o Japão, permitem essa utilização. Também por isso, os cientistas daqui estão animados. “Vejo uma enorme possibilidade de superarmos outros países. Com uma legislação avançada, poderão vir investimentos para cá”, acredita o médico Thomaz Gollop, de São Paulo, um dos maiores defensores da liberação das células para pesquisa. Animada, a cientista Mayana Zatz, de São Paulo, prepara-se para iniciar as pesquisas. “É importante começar logo porque serão muitos anos de trabalho”, acredita. O pesquisador Ricardo Santos ressalta, porém, que não se podem esperar milagres. “Temos de ter os pés no chão”, diz. É verdade. Mas nem por isso se deve deixar de ter esperança.