Ela continua rouca, mas é cada vez mais forte, clara e decisiva. Na semana passada, em Brasília, a voz das ruas atravessou as janelas envidraçadas do poder e cruzou os salões atapetados do Congresso para fazer valer, como nunca, a vontade soberana da sociedade, vitoriosa no espaço de poucas horas em várias frentes na luta pela saúde do corpo, do bolso e da moralidade pública. Começou travando a Medida Provisória 232, que pretende aumentar impostos de prestadores de serviço e pequenos empresários. Continuou ao aprovar, contra o lobby fundamentalista dos setores mais conservadores, a Lei de Biossegurança que libera a pesquisa com células-tronco de embriões humanos para combater doenças hoje incuráveis. E culminou com o recuo forçado que o clamor popular impôs ao baixíssimo clero da Câmara dos Deputados, entrincheirado num auto-complacente e frustrado aumento de 67% dos seus salários, ousadia que constrangeu a maioria dos deputados e assustou a quase unanimidade dos senadores. Num dia histórico, em 1992, ao receber das mãos dos presidentes da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) o pedido formal de abertura do processo de impeachment de Fernando Collor, o então presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro, ecoou a vontade da Nação: “O que o povo quer esta Casa acaba querendo.” Em 116 anos de República, houve poucos momentos tão afinados como o da semana que passou, demarcando a sintonia de atitude, gesto, ação e decisão de um Congresso que quis o que o povo queria. “Foram horas que contribuíram para diminuir o abismo entre a opinião pública e o sindicalismo parlamentar. E que mostram também que o alto clero retomou o controle e o juízo da instituição”, registra o cientista político Paulo Kramer, da Universidade de Brasília (UnB).

Empunhando as armas da modernidade, como o e-mail e o telefone celular, e as ferramentas de sempre, como o combate corpo-a-corpo nos gabinetes e salões do Congresso, a sociedade civil cada vez mais organizada e combativa engarrafou os computadores e congestionou os acessos aos plenários da Câmara e do Senado para fazer valer sua vontade sobre aqueles que os representam. Ali estavam os deficientes físicos investindo em cadeiras de rodas contra os medievais argumentos religiosos que tentavam abafar os avanços da ciência, com os olhos marejados de emoção e fé no progresso da pesquisa com células-tronco que pode lhes devolver a alegria do movimento, a naturalidade do gesto e, em muitos casos, a esperança de vida. Lá circularam, de pé e em grupo, os empresários, os sindicatos e as entidades civis mobilizadas também pela saúde do bolso do cidadão e pela integridade moral de um Congresso que não pode se divorciar da sociedade que representa. O Palácio do Planalto ajudou a encrespar a indignação nacional ao decretar, na terça-feira 1º, o reajuste linear de simbólico 0,1% aos servidores públicos federais.

Indignação – Neste quadro, a promessa de campanha do novo presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (PP-PE), de elevar os salários dos deputados de R$ 12 mil para R$ 21,5 mil, um porcentual indecente de 67%, incendiou o País. “Ontem eu joguei fora 300 mensagens de e-mail. Hoje são mais 400, todas elas indignadas com o aumento”, dizia na terça-feira a secretária da deputada Elaine Costa (PTB-RJ). No contato com suas bases, os deputados perceberam que um aumento como aquele poderia representar o divórcio definitivo com o eleitor. “Um aumento assim fica difícil de explicar até para a própria mãe”, espantava-se o tucano Júlio Semeghini (SP). Assim mesmo, alguns fizeram ouvidos de mercador (leia mais no quadro abaixo). Das poucas vozes que insistiam no aumento, os argumentos ficavam inaudíveis na massa de votos contrários. “É hipocrisia dizer que é contra o aumento. Só não precisa de aumento se for lobista ou corrupto”, tentou em vão Cleuber Carneiro (PTB-MG). O aumento reavivou antigos ressentimentos. No cafezinho da Câmara, o deputado Ricardo Fiúza (PP-PE) – envolvido no escândalo dos Anões do Orçamento – encontrou o conterrâneo Roberto Magalhães (PFL), que relatou a cassação dos anões. “Quem é contra o aumento é mentiroso”, vociferava Fiúza. “Peraí, eu não sou mentiroso. Se eu votar a favor, nunca mais me elejo”, interrompeu Magalhães, saindo de fininho para evitar o bate-boca. “Esse daí me disse hoje de manhã que era favorável ao aumento”, completou Fiúza, já sem a presença do desafeto. Com tanta confusão e o sinal vermelho do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), que não topou manobras para aumentar o salário, o presidente da Câmara jogou a toalha. “Eu não vou ficar de bandido sozinho. Agora, se quiserem aumento, vão ter de pedir”, desabafou o sertanejo Severino, sepultando a proposta de aumento salarial.

Nem a toga escapou. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, tratou de defender seus interesses para aprovar o aumento dos juízes para R$ 21,5 mil no Congresso, casando a proposta com o aumento dos deputados. Sugeriu uma canetada, substituindo os votos do plenário pela decisão monocrática dos dois presidentes da Câmara e do Senado, uma atitude feia para quem sonha em percorrer o País em 2006 pedindo votos aos brasileiros como presidenciável do PMDB. A esperteza de Jobim esbarrou na firme posição política do Senado. Renan Calheiros convocou os líderes para colher a opinião da Casa. “Renan, se aprovarmos isso, não vamos poder nem andar na rua”, alertou o líder tucano, Arthur Virgílio Neto (AM). O presidente do Senado fulminou a manobra: “Este salário é irreal e não tem conexão com a realidade do País”, disse Renan, expondo um enorme contraste com a posição da Câmara e abrindo uma funda cicatriz na relação com Severino. “Sempre alertei que o Senado não votaria nada em desacordo com a sociedade”, repetiu Renan. “Ele foi muito bem. Fez o que a sociedade queria”, respondeu Severino, em tom de ironia, tentando agasalhar a dura derrota de estréia no poder. O segundo vice-presidente da Câmara, Ciro Nogueira (PP-PI), que vocaliza os mais íntimos pensamentos severinos, mostrou a mágoa que fica: “Foi uma surpresa para a Casa a forma como Renan reagiu. Sair de bonzinho da história não foi muito convincente para o relacionamento do Senado com a Câmara”, provoca. O clero de Severino promete chumbo grosso, mostrando que o Senado (com apenas 81 senadores) tem um orçamento aproximado (R$ 2,5 bi) ao da Câmara (com 513 deputados, seis vezes mais numerosa). “Os senadores, que têm carro, gasolina e motorista, posam de heróis e nós somos os vilões da história”, reclama o deputado João Caldas (PL-AL), tropeiro severinista.

A muralha do Senado evitou que a onda de reajuste da Câmara devastasse, pelo efeito cascata, as contas de Estados e municípios, que estariam obrigados a aumentar seus deputados para manter a isonomia com o Legislativo federal. Sem argumentos para dobrar senadores e a opinião pública, Severino jogou a toalha – e desistiu do aumento na noite da quarta-feira 2. “Acabou. Isso é um assunto superado”, encerrou o presidente da Câmara. Horas antes, o Congresso dava outra prova de maturidade, barrando a gula tributária do governo expressa na MP 232, que aumenta os impostos. O relator, senador Romero Jucá (PMDB-RR), multiplicou por dez o limite para cobrança do Imposto de Renda para os produtores, elevado ao patamar de R$ 11.640. “Quero ser o cirurgião plástico, não o coveiro da MP”, disse o senador, desconfiado como todo mundo das contas da Fazenda, que apontam uma perda de R$ 2,5 bilhões com a correção de 10% da tabela do Imposto de Renda. O Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, no entanto, diz que a perda não passa de R$ 1,2 bilhão. Sensível à chiadeira, Lula ligou na terça-feira de Montevidéu e mandou seu vice, José Alencar, adiar por um mês o prazo para a cobrança dos impostos na fonte, dando mais tempo à negociação no Congresso.

Nas ruas – Até a decisão de cortar R$ 15,9 bilhões do Orçamento de 2005 levou o povo para as ruas. Estudantes fecharam metade da avenida Paulista, na quarta-feira 2, pedindo mais verbas para a Cultura. Eles ecoavam as reclamações de vários ministros, entre eles Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, e Gilberto Gil, da Cultura, que criticou os cortes. O momento mais comovente da sinergia entre Congresso e sociedade aconteceu na noite de quarta-feira, quase no mesmo momento em que morria a idéia de reajuste dos deputados. Por 363 votos contra 59, a Câmara aprovou a Lei de Biossegurança e, com ela, as pesquisas de células-tronco de embriões congelados há três anos. Deficientes físicos e pacientes de doenças degenerativas, que dependem desses avanços para melhorar ou mesmo sobreviver nos próximos anos, choravam emocionados com o passo adiante que o Congresso imprime à ciência brasileira. Nesta cruzada, uma esmagadora maioria parlamentar atropelou o reduto conservador ligado às igrejas Católica e Evangélica. Seu papa era o cardeal do baixo clero, Severino Cavalcanti, um devoto frequentador de missa que combatia abertamente a célula-tronco. Mas ele tinha marcação cerrada em casa: a mulher, a cientista social Amélia, e a filha, a fisioterapeuta Ana, que defendem as pesquisas, apesar da fé católica. “Abro mão de meus princípios religiosos em favor da causa”, dizia Ana, no plenário da Câmara, onde acompanhou atentamente a votação. O pai não suportou a pressão: na hora do voto, democraticamente, sem uma única palavra de crítica, Severino abandonou a mesa para não votar. “Até eu evoluo”, dissera ele a ISTOÉ na semana anterior.

Na luta eterna entre progresso e retrocesso, razão e fé, tradição e renovação, fisiologia e cidadania, o Parlamento brasileiro cumpriu plenamente suas obrigações – e fez prevalecer, antes de tudo, os interesses da sociedade que ele representa, com seus defeitos e virtudes. O jogo de pressões e contra-pressões de partidos políticos e grupamentos sociais produziu um debate que melhorou a essência das idéias e leis em discussão, aproximando o povo de seus representantes. Mesmo quando erram e perdem o foco das prioridades, os parlamentares aprendem. A oca discussão sobre seus salários quase transformou em fiasco a entrega solene do texto de reforma sindical ao Congresso, na quarta-feira. Dois ministros (Ricardo Berzoini, do Trabalho, e Aldo Rebelo, da Articulação Política), os presidentes de quatro centrais sindicais e cinco confederações de empresários e quase dois mil sindicalistas esperaram quase duas horas pelos presidentes das duas casas, entretidos com salários. Renan Calheiros não apareceu. Severino Cavalcanti, ao despontar no auditório, foi vaiado. Eles, mais do que ninguém, não querem para suas casas nada que o povo não queira. Essa é a beleza da democracia e de uma cidadania consciente.