23/04/2007 - 10:00
LUXO Senhora baiana usando torço na cabeça e
balangandãs de ouro em foto de 1890
Cantada em verso e prosa, e mais que homenageada em filme, novela e samba-enredo, a escrava Chica da Silva é o primeiro nome que vem à mente quando se pensa na emancipação da mulher negra no Brasil. Antes dela, no entanto, inúmeras afro-descendentes se destacaram na luta pela liberdade, cada uma a seu modo e como podia se virar – e isso ocorreu à margem da historiografia branca oficial que nem sequer as menciona. Alguém já ouviu falar, por exemplo, em Marina Baptista de Paracatu, que ofereceu à rainha de Portugal Maria I um cacho de bananas de ouro em troca de um título de nobreza? E de Rita de Souza Lobo, que na mesma Minas Gerais de Chica da Silva descobriu uma mina de ouro com a qual comprou a sua liberdade? Nenhuma das duas está nos livros escolares, mas seus nomes acabam de vir à luz no excelente livro Mulheres negras do Brasil (496 págs., R$ 135), de autoria de Schuma Schumaher e Érico Vital Brasil (editado pela Rede de Desenvolvimento Humano e pela Editora Senac).
Do Brasil Colônia aos dias de hoje, o inventário é longo e, assim, o livro estuda o papel das mães-de-santo, mães-de-leite, parteiras e curandeiras, abrange a política e os movimentos sociais e chega ao esporte e à cultura, destacando nomes como os das atletas Melania Luz e Wanda dos Santos – as primeiras negras a participarem de uma Olimpíada. Na área artística, fala da cantora Elizeth Cardoso, apelidada preconceituosamente de “faxineira das canções” no início de sua carreira e que conquistou por seu próprio esforço (e timbre vocal) o título de “A divina”, na década de 1960. O malabarismo da sobrevivência das negras começa pela atividade das famosas quitandeiras com seus exuberantes tabuleiros na cabeça, função que, segundo Schuma, deu origem ao comércio ambulante no País. Liberadas pelos senhores, elas vendiam a produção de hortas e pomares, podendo ficar com o excedente – essa diferença no que arrecadavam era guardada e utilizada, em alguns casos, na compra da alforria.
pioneiras A cantora Elizeth Cardoso (no alto, à esq.), a miss Aizita (acima), as atletas Melania e Wanda (abaixo),
duas meninas trabalhadoras e a quituteira Paula Baiana,“fuzileira honorária”
Algumas mulheres, depois de libertas, chegavam a enriquecer, e esse é o caso de Francisca Poderosa, que se estabeleceu em Minas Gerais no século XVII, fugida de São Paulo. Uma das grandes descobertas do livro, aliás, é a figura de Paula Baiana, quituteira que veio da Bahia para o Rio de Janeiro em 1895, tornando-se “fuzileira honorária” da Marinha devido às delícias que fazia para os fuzileiros. Vestida com paletó vermelho (botões dourados), ela passava em revista a tropa em datas cívicas como o 7 de Setembro, com sua enorme cesta de vime equilibrada à cabeça. Dona Paula ficava nos pés-de-moleque e bolinhos de tapioca. Em São Paulo, porém, outra quituteira largou as caçarolas em favor das armas: seu nome era Maria José Bezerra, uma paulista de Limeira que se alistou como enfermeira na Revolução de 1932. No calor da luta, se alinhou na frente de combate e foi ferida. Ficou conhecida como Maria Soldado.
No capítulo dedicado à arte, o livro traz outra revelação: a primeira escritora brasileira era negra. Trata-se de Maria Firmina dos Reis, que publicara em 1859 o romance Ursula. Ela assinara a obra sob o pseudônimo de “Uma maranhense”. O racismo e o preconceito não poderiam, é claro, estar ausentes de obra desse porte que levou 39 meses para ser concluída, envolvendo cerca de 40 pesquisadores. Entre as 950 imagens do livro, as que ilustram o capítulo Nos porões do preconceito devem ser examinadas com atenção – como a perseguida personagem Lamparina, protagonista da revista infantil Tico Tico (anos 20). Outro destaque é a reprodução de uma página do jornal Última Hora, com a foto de Aizita Nascimento, primeira miss negra, em um desfile de 1963. “Branca? Eu? Nunquinha?”, dizia ela na época, condenando o uso de um creme que “faria o preto virar branco”. Aizita lançara mão do humor, que também é boa arma para aplacar o sofrimento acumulado ao longo de diversas gerações.