24/01/2014 - 20:50
Não é um consenso, mas a maioria dos historiadores afirma que São Paulo se tornou a capital cultural do Brasil nos anos 1930. No afã de reaver o poderio econômico dos tempos do café, as forças políticas se cercaram de intelectuais oriundos do modernismo e instituições como a Universidade de São Paulo e o Departamento Municipal de Cultura (futura Secretaria Municipal de Cultura) se estabeleceram como modelos para o resto todo do País. Apesar de fértil, o crescimento durou pouco. Com o golpe de 1937 e o estabelecimento do Estado Novo, o sopro progressista se dispersou e, no mesmo movimento, a ação de atuantes personalidades culturais. O escritor Mário de Andrade (1893-1945), por exemplo, suspendeu sua importante pesquisa de música popular e se mudou para ao Rio de Janeiro, onde, afastado das funções políticas, se dedicou à crítica.
Uma fatia importante dessa produção, organizada pela pesquisadora Francini Venâncio de Oliveira, chega a público agora pelo livro “Sejamos Todos Musicais”, da Alameda Editorial. Primeira reunião impressa das colunas publicadas originalmente na “Revista do Brasil” entre 1938 e 1940, a obra traz um Mário de Andrade decepcionado, descontente e profundamente mal-humorado em relação ao novo endereço. “Chega a ser engraçado o modo como ele se refere às diferenças de costumes entre as duas capitais”, diz a filósofa, que realizou o levantamento no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB-USP). Tanto é que, embora a natureza da coluna fosse de crítica musical, não era raro que ele usasse um espetáculo como pretexto para demonstrar seu estranhamento em relação ao Rio de Janeiro.
Quando uma réplica do Pavilhão Monroe, da Exposição Universal de Saint Louis, foi erguida na avenida Rio Branco, sua coluna da edição começava assim: “Entra um chinês num pavilhão muito feio e enfeitado, mas bem enfeitado mesmo, está claro que se intitula Pavilhão do Brasil. Essa é pelo menos uma tradição, bem exemplificada pela compoteira que, para maior exemplo dos brasileiros, ali foi recomposta no início da avenida Rio Branco, na sublime cidade do Rio de Janeiro.”
Afastado da vida pública de São Paulo,o escritor modernista
Mário de Andrade passou dois anos no Rio de Janeiro,
onde publicou críticas que iam além do circuito musical
Em um outro texto, ironicamente intitulado “Por Certo que Hoje Meu Assunto não Será Beethoven ou Berlioz”, escreveu: “O fato ocorreu naturalmente com um amigo bastante íntimo.” Na crônica, Mário de Andrade se refere a um carioca chamado Murilo, que a pesquisadora desconfia se tratar do escritor mineiro Murilo Mendes, que vivia no Rio na época. “Convidou-me ele para tomarmos um café, sentamos, e eis que o meu amigo íntimo, gentilmente, com toda a aparência de cortesia, põe-se a derramar açúcar e demais açúcares na minha xícara. (…) Eu então fico inquietíssimo, porque, se a quantidade não for justa, o café se estraga completamente. Inda mais se tratando desse café que se bebe no Rio, duro, duríssimo.”
O descontentamento do modernista ia além do café diferente. Para o intelectual, era inconcebível a maneira colonizada com que a prefeitura da então capital federal gerenciava suas casas de espetáculo, priorizando solistas internacionais à formação de grupos como corais. Em São Paulo, Mário de Andrade havia criado os Corais Lírico (que este ano passa a se chamar Coral Mário de Andrade) e Paulistano. Ambos ainda hoje compõem o quadro do Teatro Municipal de São Paulo. “A orientação da música pública que se faz no Rio, e a sua qualidade, é incomparavelmente inferior à de São Paulo. Aqui no Rio, nós estamos ainda no regime do solista. Se o Rio de Janeiro é uma ópera, São Paulo é uma sinfonia.”
A criação dos departamentos culturais na capital paulista tinha feito Mário de Andrade acreditar na concretização dos preceitos da primeira fase do modernismo, como a ampla difusão da cultura popular, da qual ele fora um dos nossos primeiros e principais defensores. “O tom crítico em relação ao entorno também mostra que, com o baque do Estado Novo, Mário de Andrade abraçou para sempre o olhar político e social em relação à produção artística”, diz a pesquisadora. Ou seja, o mal-estar explícito e implícito na maioria desses textos do período de dois anos no Rio se inscreve na biografia do autor como um ponto de mudança: era o impacto do naufrágio de uma fase política atuante, mas o início de uma produção intelectual mais engajada, que marcaria a atividade de Mário de Andrade até o final da vida.