Nos anos 80, ápice da moda do culto ao corpo, homens e mulheres malhavam e deixavam de comer carne para cuidar melhor da saúde. Hoje, o cenário mudou. Corpo bonito pode ser sinônimo de sucesso, fama e, melhor ainda, dinheiro. O problema é que essa equação não vale só para adultos. Cada vez mais crianças que nem sequer deram o primeiro beijo, sonham em virar uma Gisele Bündchen e não poupam esforços para isso. Resultado: aulas de dança, dietas malucas e atividades físicas puxadas estão virando hábitos tão rotineiros para os pequenos como brincar de carrinhos e bonecas. Meninos e meninas fazem das tripas coração para atingir um corpo enxuto e, a partir dele, se destacar na sonhada carreira de modelo. Mesmo que isso signifique deixar de lado uma das fases mais bonitas e importantes da vida: a infância.

Barbies – Embora pareça típico dos dias de hoje, esse desejo doentio pelo corpo adulto e malhado não é novidade. Pode-se dizer que, grosso modo, ele começou a crescer quando, em 1959, foi criada a boneca Barbie. “Antes, as crianças só brincavam com bonecas que também eram crianças. Hoje, se elas querem virar adultas antes do tempo é também porque estão se espelhando em seus próprios brinquedos”, explica a psicanalista infantil Ana Olmos. Exatamente por isso, na época da explosão da Barbie, sua fabricante, a Mattel, quase foi processada. Um grupo de pais, professores e pedagogos acusavam a empresa de despertar uma “descabida” sexualização precoce da infância. Apesar de parecer exagero, de certa forma esse grupo revoltado com a Barbie acabou prevendo o efeito “bola-de-neve” que a boneca provocaria na vida da criançada do ano 2000. É o caso da modelo-mirim Aline Esquiabão, nove anos, da agência paulista Dois Tons. Além de “Barbie-maníaca” ela é fissurada por ginástica e dietas.
“Tenho tanto medo de engordar que até pedi a minha mãe para comprar uma balancinha para o meu quarto. Me peso todos os dias e, se engordo, paro de comer porcarias”, conta Aline. Segundo ela, que fala como gente grande, evitar frituras e doces não é só uma questão de dieta. “Não quero ficar com colesterol alto ou diabética. Isso prejudicaria a minha saúde e, consequentemente, minha carreira”, diz. Quanto à sua paixão pela princezinha de 30 centimetros da Mattel, Aline não titubeia: “Ela é linda e eu adoraria me parecer com ela. Mas sou realista e sei que mulher nenhuma tem aquele corpo.” Mesmo assim, a modelete não deixa de fazer suas aulas de ginástica olímpica durante a semana e 50 abdominais diários. “A ginástica olímpica é um bom exemplo de uma atividade legal para a criançada. Elas podem pular e brincar de um jeito lúdico, sem stress”, comenta o fisiatra Sérgio Lianza. Já os abdominais são exatamente o que a criança não deve fazer. “Esse tipo de exercício não é aconselhável antes da formação completa do esqueleto, pois pode causar sérios desvios de coluna”, alerta Lianza. Além disso, é preciso entender que o corpo dos pequenos é, por natureza, diferente do corpo adulto. “Forçar a formação de um abdômen bem definido numa criança é ir contra as leis naturais. Até o início da adolescência é normal que elas sejam barrigudinhas”, completa.

Alerta – O desejo de antecipar a fase adulta pode acabar transformando as crianças em “miniadultos”. E, para evitar que isso aconteça, é imprescindível a intervenção dos pais. “Eles precisam impor limites para que as crianças não esqueçam da infância em função do sonho de se tornarem perfeitas”, diz Ana Olmos. O contraditório do alerta da psicanalista, no entanto, é que na maioria das vezes são os próprios pais que ingressam os filhos na carreira de modelo, antes mesmo que eles aprendam a andar. Esse é o caso da modelo-mirim Leticia Montes, nove anos, da agência paulista Prit, que começou na profissão quando tinha apenas sete meses de idade. “Seu primeiro trabalho foi como bebê Jonhson, e isso foi idéia minha. Mas se ela já fez mais de 80 comerciais até hoje foi por escolha própria”, garante a mãe, Andréa Magliani. De fato, quem olha a agenda de Leticia percebe que ela precisa ser mesmo muito apaixonada pelo que faz para aguentar chegar ao final da semana. “Natação, aulas de dança e teatro. Faço tudo que posso para realizar meu sonho de virar uma grande modelo”, vibra a garota.

Prazer – Segundo o médico esportivo Júlio Stancat, apesar de parecer soterrada com as atividades físicas extra-curriculares, Leticia está no caminho certo. “Quando a criança tem prazer em realizar esportes, isso não causa dano algum. Pelo contrário, nessa fase da infância é importante diversificar ao máximo as atividades dos pequenos para que eles tenham a chance de perceber aquilo de que realmente gostam e de trabalhar o maior número de músculos possível”, diz Stancat. Mesmo assim, o próprio médico reconhece que a criança precisa ter seu tempo de descanso. “O ideal é que pelo menos durante um dia na semana elas possam repousar e ficar sem fazer nenhuma atividade física para dar uma pausa tanto para o corpo quanto para a mente”, completa o especialista.

Essa, porém, não parece ser a filosofia do modelo-mirim José Felipe Gomes, dez anos. Para se manter em forma, ele joga basquete às segundas, quartas e sextas-feiras. E, como se não bastasse, faz natação às terças e quintas-feiras. “Adoro fazer esportes e não me sinto cansado por isso. Pelo contrário, tenho mais pique para fazer as coisas”, diz o garoto cujo único defeito aparente é ser paranóico com o peso. “Tem dias que eu acordo e me acho gordo. Aí decido pular alguma refeição. Mas sempre que minha mãe descobre levo uma baita bronca”, reclama José Felipe. Apesar de parecer uma megera aos olhos do filho, segundo os médicos, Ivete Gomes está mais do que certa em impedi-lo de se alimentar mal. “Os pré-adolescentes precisam ingerir pelo menos 2,5 mil calorias diárias, pois estão em fase de desenvolvimento. Portanto, dietas malucas para crianças nem pensar”, avisa Stancat.

Nesse sentido a modelo-mirim Wially Souza, nove anos, parece estar indo no caminho certo. Preocupada em não “estragar” sua carreira por causa de uns quilinhos a mais, Wially pediu à mãe que a ajudasse a controlar seu apetite. Resultado: há seis meses a garota frequenta semanalmente o Peso Ideal – programa de reeducação alimentar em que as crianças são orientadas a ingerir pelo menos 2 mil calorias diárias. “Já perdi quase cinco quilos e estou bem mais feliz com meu corpo”, comemora a modelo. Parece mentira, mas, nos dias de hoje, dieta virou mesmo “coisa de gente pequena”.