29/11/2006 - 10:00
Ao comentar certa vez o rótulo que a crítica lhe dava de cineasta anti-hollywoodiano, o diretor americano Robert Altman usou da acidez e da ironia que marcou a sua obra de mais de 50 filmes. “Fui indicado, pela Academia, diversas vezes ao Oscar. Mas eles vendem sapatos e eu faço luvas.” Ao morrer em Los Angeles na segunda-feira 20, aos 81 anos, de causas não reveladas, Altman de fato saiu dos negócios dos sapatos com uma bela coleção de luvas – ele assina obras-primas como M.A.S.H. (1970), Nashville (1975), Cerimônia de casamento (1978), Short cuts – cenas da vida (1993) e Assassinato em Gosford Park (2001). E viveu a tempo de ter o seu talento reconhecido pela Academia de Hollywood, que o premiou em março deste ano com um Oscar pelo “conjunto de seus filmes”. Na ocasião, ele revelou que havia se submetido a um transplante de coração e que, portanto, viveria mais 40 anos, já que o órgão pertencia a uma mulher também de 40 anos. A piada soou como despedida.
Soou também como despedida o seu último trabalho, ainda em cartaz no Brasil, A última noite – trata da apresentação derradeira de um programa de música country. Esse gênero de música, aliás, já havia lhe inspirado Nashville, só que Altman usara então o cenário como mero pretexto para falar de política porque o seu estilo era um pouco assim: mirava em temas determinados, mas atingia questões subjacentes. E era isso que os “fabricantes de sapatos de Hollywood” não suportavam. Em M.A.S.H, por exemplo, o foco é um acampamento médico improvisado durante a guerra da Coréia, mas o recado era para a guerra do Vietnã. A crítica ao militarismo apareceria de novo em O exército inútil, sobre a preparação de um destacamento mostrada como uma máquina que aniquilava toda a individualidade.
Da guerra à política, ele retratou o próprio universo cinematográfico (O jogador, 1992), falou de moda (Prêt-à-porter, 1994), enveredou pelos quadrinhos (Popeye, 1980) e abordou o balé (De corpo e alma, 2003). Assim, os assuntos mais heterogêneos foram esquadrinhados pela lente lúcida de Altman. Amante de histórias em que personagens se alternam sem perder a importância, e as suas trajetórias se fundem e se sucedem como numa panorâmica que se demora em cada detalhe, Altman parecia querer abarcar, em seus filmes, tudo que é manifestação de vida. Dizia ele: “Fazer filmes é como construir um castelo na areia. Você monta toda a estrutura e depois vê o mar levar tudo embora. Mas fica na sua memória.”