Aos 72 anos não aparentes, curtindo o novo apartamento com espaço suficiente para abrigar o que chama de “a maior amostragem de documentos sobre música popular” do País, José Ramos Tinhorão – uma das personalidades mais controvertidas do jornalismo musical –, de tão bem-humorado nem parece o mesmo ser que em diversas oportunidades achincalhou a bossa nova, o tropicalismo e a jovem guarda. Sem exercer sua contundência com a frequência de antigamente, ele agora quer ser chamado de historiador. “Há quatro anos que não escrevo uma crítica!”, ressalta. Conhecido pelas opiniões radicais que emite em frases curtas e impiedosas, Tinhorão recebeu ISTOÉ para falar de sua vida e desfazer alguns mitos como, por exemplo, o de que achava Pixinguinha americanizado. Na verdade, ele se referiu às duas primeiras gravações que o músico fez para Carinhoso – que mais tarde receberia letra de João de Barro – em que, numa delas, o tema havia virado um foxtrote.
 

Esta determinação lhe valeu inimigos e a fama de irascível, stalinista. “Stalinista, não”, avisa, afirmando que o que pratica é o estudo interpretativo do fato cultural do ponto de vista do materialismo histórico. “Eu destruo ilusões”, brinca o jornalista-historiador, que está lançando o livro A imprensa carnavalesca no Brasil – um panorama da linguagem cômica (leia quadro). “Quando a música está em vias de ser feita exclusivamente por computadores, eliminando de vez a figura do criador, e o que toca no rádio é axé, sertanejo, rock, tudo isso, a questão é mercadológica, não cultural”, analisa.
 

Tinhorão fala mal, mas escreve bem. Ficou famoso como autor das fotolegendas publicadas na capa do Caderno B, do Jornal do Brasil. “Foi quando começaram a me chamar de o legendário Tinhorão”, ironiza. No mesmo jornal escreveu uma coluna na página de Sérgio Cabral, Música naquela base. Para não chatear o titular, e dando asas à sua veia de pesquisador, passou a frequentar diversos morros, bebendo direto da fonte através de João da Baiana, Donga, Pixinguinha, Tia Ciata. Atravessou os anos 60 sacudindo o Rio de Janeiro e a década de 70 em São Paulo, escrevendo livros entre uma e outra guerrilha verbal. Numa delas, Tinhorão afirma que Samba de uma nota só (Tom Jobim e Newton Mendonça) seria a repetição de Mr. Monotony (Irving Berlin) e Águas de março, calcada na canção folclórica Águas do céu, registrada pela cantora Leny Eversong, em 1956. Para continuar no mesmo assunto, chegou a ponto de certa vez dizer que Frank Sinatra não passava de um Nelson Gonçalves que tinha encontrado em Jobim o seu Adelino Moreira.

Bom humor – Marxista mais ou menos convicto, Tinhorão foi casado com a filha de um militar. Quando se deu conta, viu-se genro de um general de quatro estrelas, sendo obrigado a escrever quase escondido. Em 1980, já em São Paulo, colocou tudo o que tinha – algumas roupas – dentro de sua perua Belina, largou o casamento, a casa confortável na zona sul da capital, e instalou-se na quitinete que usava como escritório. Durante duas décadas dormiu em sleeping-bags, colchonetes e escreveu muito. É autor de títulos imprescindíveis, entre eles História social da música popular brasileira (1988), reeditado o ano passado pela editora 34. Até o meio deste ano, serão lançados os dois primeiros volumes da trilogia A música no romance brasileiro pela mesma editora. Agora, de casa nova, com espaço até para receber a namorada, o jornalista parece ter recuperado o humor antigo, época em que cunhava frases célebres como a que soltou, nos anos 70, ao ver de perto a líder americana Betty Friedan em sua cruzada pela liberação da mulher. Espantado com o que chama de feiúra feminista, disparou à queima-roupa. “Por mim, essa já está liberada!” É o “legendário” Tinhorão.

Carnaval erudito
Até praticamente a metade de A imprensa carnavalesca no Brasil – um panorama da linguagem cômica (hedra, 216 págs., R$ 19), o leitor acha que a capa não corresponde ao conteúdo pois sobram expressões e gêneros cultivados na Idade Média e no Renascimento europeu. Só no final é que José Ramos Tinhorão revela a charada. Ele quer e demonstra com uma fantástica e interessantíssima pesquisa original que os redatores dos jornaizinhos de Carnaval surgidos no Brasil entre 1873 e 1950 recriaram formas literárias da cultura popular européia de séculos atrás. Tinhorão fuça pelo latim macarrônico medieval e também carioca e identifica os grandes criadores do fenômeno Carnaval. Difícil é hoje perceber sua origem de festa comunitária, que mereceu de Goethe a definição de “festa que o povo oferece a si próprio”, tantos os entulhos comerciais que a atravancam e desvirtuam. Evoé Tinhorão! João Marcos Coelho.
João Marcos Coelho