08/09/1999 - 10:00
Muito se discutiu nos últimos anos sobre os diversos aspectos da inteligência. Houve desde teorias preconceituosas como a do livro A curva do sino (1995), que garantia ser a disparidade social entre brancos e negros nos EUA razão direta de uma suposta maior inteligência branca, até a idéia de que o principal fator de incremento do raciocínio seria o estímulo da sensibilidade, tema de A inteligência emocional, de Daniel Goleman, também de 1995. Enquanto os teóricos da neurologia gastavam seu tempo (e o de seus leitores) em áridas e longuíssimas defesas de suas teses, um biólogo da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, passava seus dias alterando o DNA de camundongos para, em seguida, testar suas capacidades de aprendizagem. Na quinta-feira 2, Joe Tsien publicou os resultados dessa pesquisa na revista Nature. E subverteu tudo o que se conhecia sobre a inteligência. Alterando um gene do DNA dos camundongos, Tsien elevou suas inteligência e memória, mostrando como são intimamente ligadas ao código hereditário.
Em primeiro lugar, Tsien criou camundongos desprovidos de um gene chamado NR2B e mostrou que tinham aprendizagem e memória reduzidas em relação aos ratos normais. O geneticista produziu então cobaias dotadas de cópias extras do gene e checou sua aptidão comparada à dos ratos comuns. Todos foram postos em gaiolas onde puderam explorar peças diferentes de um jogo de armar como o Lego. Passados vários dias, uma peça foi trocada por uma nova e os camundongos recolocados na gaiola. Os animais transgênicos reconheceram o objeto antigo e não perderam tempo, trataram de explorar o novo. Já os ratos comuns gastaram o mesmo tempo com as duas peças.
No segundo teste, o pesquisador testou a memória emocional dos ratos. Eles foram postos numa câmara onde recebiam choques nas patas. Quando recolocados no local após uma hora, um dia e dez dias, os transgênicos demonstraram mais medo que os demais. Por outro lado, ao repetir a experiência no mesmo local, mas sem os choques, eles perceberam mais rápido que o perigo havia passado. Na prova final, os bichos foram jogados numa piscina. Numa das bordas, submersa, havia uma plataforma para ajudar a sair da água. Os transgênicos aprenderam a localizar a plataforma em três sessões, enquanto os outros precisaram de seis. "Eles estão aprendendo bem melhor e lembrando por mais tempo. São mais espertos", declarou Tsien, lambendo suas crias. Ele salientou que os ratos retiveram até a idade adulta a capacidade de aprendizado da juventude. Da mesma fora que nos humanos, acredita-se que os ratos jovens apreendem mais rápido que os adultos.
Fechadura dupla – A pesquisa provou que o gene NR2B é fundamental no controle da habilidade cerebral de associar um evento a outro, propriedade básica do aprendizado. Genes podem ser entendidos como receitas para a produção de proteínas com uma ação específica no organismo. O NR2B é responsável por uma proteína que adere à superfície dos neurônios, as células do sistema nervoso. Essa proteína funciona como um receptor, um plugue onde sinais químicos se acoplam. O receptor chama-se NMDA e opera como uma fechadura dupla. Precisa de duas chaves – ou sinais – para abrir. Se ambos chegam ao mesmo tempo – por exemplo um associado à visão de fogo e o outro à sensação de dor –, o receptor é ativado e uma memória formada – no caso, a de que contato com fogo dói. Por disporem do gene NR2B em abundância, os neurônios dos ratos transgênicos têm mais receptores, portanto aprendem mais rápido.
A descoberta abre caminho para, no futuro, empregar-se manipulação genética no tratamento de humanos. "Este trabalho levanta a possibilidade de não só produzir-se animais mais espertos como também obter uma terapia genética para uso humano em áreas como a demência", aposta Ira Black, chefe da cadeira de neurociência da Universidade Rutgers, de Nova Jersey. Aqui cabe uma ressalva: sabe-se que os seres humanos possuem um gene correspondente ao NR2B, mas seu efeito na inteligência ainda não foi estabelecido.
Para Joe Tsien, sua descoberta indica ser possível elevar o QI, o coeficiente de inteligência, através de meios genéticos. Isso suscita questionamentos éticos seriíssimos, decorrentes da tremenda tentação que será poder um dia elevar a própria inteligência – ou a dos filhos – aos níveis probabilísticos de um mestre de xadrez. O gênio foi solto da lâmpada e nada poderá prendê-lo. "Demos os primeiros passos na direção de um mundo onde poderemos projetar nossos descendentes", diz Arthur Caplan, diretor do Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia. "Não acho isso necessariamente ruim. Encontrar meios de reparar autismo e retardamento mental associados à síndrome de Down ou ao mal de Alzheimer é muito bom. Mas não estou preocupado em ver um dia hordas de Einsteins na minha vizinhança", diz Caplan.