08/03/2000 - 10:00
Perto da meia-noite do dia 4 de fevereiro de 1999, quatro policiais do esquadrão Street Crime Unit – a unidade de elite no combate ao crime de rua em Nova York – procuravam um estuprador pelas ruas pobres do lado oeste da região do Bronx. Encontraram um rapaz negro entrando no vestíbulo de um prédio. Cercaram imediatamente o local e deram ordens para que o suspeito parasse. O moço, um imigrante africano, voltou-se, enfiou a mão no bolso traseiro e retirou de lá um objeto negro. A partir daí, os números que envolvem o caso são tão superlativos quanto impressionantes. Nada menos do que 41 tiros foram disparados em duas sessões de fuzilamento. Dezenove balas atingiram o alvo, imóvel. Descobriria-se depois que a vítima era um trabalhador, sem passagem pela polícia. O objeto que tinha à mão direita era uma carteira com documentos. Durante mais de um mês, a cidade de Nova York seria mobilizada em manifestações de protestos. Celebridades, como a atriz Susan Sarandon, o ex-prefeito David Dinkins e o ativista e pastor Jesse Jackson, foram presas em demonstrações de desobediência civil em frente do QG principal da polícia e da prefeitura. Um ano depois, um júri na cidade de Albany – a cerca de 70 quilômetros de Manhattan, para onde o julgamento fora transferido numa manobra da equipe de defesa – ouviu durante quatro semanas as acusações. Depois de 21 horas de deliberações, o mesmo júri, no último dia 25, inocentou os quatro policiais acusados em seis quesitos cada um. Foi ouvido 24 vezes o mesmo veredicto: “inocente”.
Começava desse modo 41 dias de protestos – um para cada bala disparada contra Diallo – que têm imobilizado boa parte de Nova York e promete também capturar a agenda de candidatos à presidência, ao senado e acionar os promotores do Departamento de Justiça americano num processo judicial movido pelo governo federal. Pelas ruas do Bronx ou nas vizinhanças de City Hall, onde estão a prefeitura e o QG da polícia, homens e mulheres, a maioria negra e hispânica, levam filhos pequenos nos ombros e carteiras nas mãos, aos gritos de “Matem este também!”, ou “Eu tenho uma carteira: atirem em mim!” À frente das manifestações estão os pais de Diallo. Sobre um pódio improvisado, debaixo da garoa fria da tarde de segunda-feira 28, Kadiatou Diallo, a mãe do morto, como sempre está paramentada com as roupas tradicionais de Gana. Assim, de longe, a trágica figura parece o símbolo maior da terra onde seu filho foi morto. Seus contornos lembram a Estátua da Liberdade, mas seu carisma dramático é aquele das viúvas de Tróia. “Justiça! Só desejo justiça, não apenas para Amadou, mas para todos nessa cidade que vivem o terror da perseguição por causa da cor de suas peles”, disse em discurso emocionado, mas sereno. Sua compostura, aliada a uma inesperada cabeça fria de seu protetor, o reverendo Al Sharpton, são os únicos fatores que impedem a massa de partir para distúrbios violentos. “Não se permita que um único tijolo seja atirado. Não se permita que uma única garrafa seja arremessada. Os que acreditam em Amadou não devem trair sua memória e agir como aqueles que o mataram”, discursou surpreendentemente Sharpton. Ele é o ativista negro, líder na defesa dos direitos civis de minorias, e cujas armas favoritas no passado bem recente eram a demagogia e os discursos inflamados. Sua destemperança valeu-lhe homenagem dúbia no romance Fogueira das vaidades, de Tom Wolfe, onde um personagem militante e oportunista foi moldado à imagem e semelhança do reverendo. Dessa vez, porém, sua ação firme, mas pacifista é o único escudo protetor de uma cidade onde as minorias raciais estão a ponto de explodir.
Racismo – O impacto do veredicto, a princípio, causou pasmo. Não se conseguia entender as razões do júri para soltar o esquadrão de fuzileiros da polícia. O próprio Sharpton explicou a ISTOÉ o que deu errado no trabalho da equipe de promotores do Bronx que foi a Albany com a certeza de, pelo menos, ter conseguido as condenações por crimes de homicídio culposo, e nem isso conseguiu. “Os jurados não viram uma face na vítima. Não visualizaram um retrato de Amadou, o rapaz trabalhador e muçulmano devoto. Além disso, a promotoria falhou em não levantar a questão racial do caso. O racismo intrínseco dos policiais da cidade de Nova York não foi abordado. Foi como se um enorme elefante cor-de-rosa estivesse na sala do tribunal, e todos se recusassem a vê-lo. A questão racial é fundamental neste caso”, disse o reverendo.
A análise é corretíssima, a equipe de quatro promotores brancos falhou em ressaltar o aspecto racial da questão, preferindo pegar-se a tecnicalidades. E o preconceito racial é fato reconhecido até mesmo pelos próprios policiais nova-iorquinos. “A Força está composta por policiais que não moram na cidade, não foram criados na cidade e não entendem a composição demográfica local”, disse a ISTOÉ o sargento Frank McCullough, um veterano da Polícia. Seus colegas envolvidos no caso Diallo moram e foram criados em comunidades suburbanas de Long Island. “Eu nasci e fui criado no Bronx. Desde pequeno vejo diferentes tipos raciais. Fui para a escola com meninos negros, judeus, hispânicos, árabes e chineses. Minha vida inteira convivi com esses tipos. Estou acostumado com gente diferente de mim. Agora, esses novos policiais vêm dos subúrbios de classe média, principalmente de Long Island, onde a comunidade é homogênea: só tem brancos. Para eles, os negros, hispânicos, árabes ou orientais continuam sendo suspeitos”, ensina o sargento.
“Se Diallo fosse branco, os policiais teriam agido de modo diferente. Eles não iriam confundir uma carteira de documentos de um jovem branco com um revólver”, disse o advogado Johnnie Cochram, estrela do time de defesa que conseguiu inocentar o jogador O.J. Simpson no julgamento mais sensacional da década. A julgar pelas ações passadas do esquadrão a que os policiais envolvidos pertencem, essas atitudes de peneira racial são parte integrante da estratégia de trabalho. A Street Crime Unit que foi dissolvida depois do caso Diallo, tinha 150 policiais, algo como 2% da força, todos agindo à paisana. Sua principal atividade era patrulhar ruas de regiões mais pobres em busca de armas não registradas, prevenção de crimes e captura de suspeitos. Nada menos do que 20% das armas apreendidas em Nova York durante o espaço de um ano vieram das ações dessa unidade. Mas o custo social dessa prevenção, dizem os críticos, foi muito caro. Entre 1997 e 1998, os homens de ouro da SCU pararam e revistaram 45 mil pessoas, sendo que somente nove mil foram presas. Ou seja: um exército de 36 mil cidadãos inocentes foi importunado, passou vergonha e teve seus direitos constitucionais desrespeitados apenas porque policiais não foram com suas caras. Nos Estados Unidos está previsto na Constituição que ninguém pode ser revistado sem motivos concretos de suspeita. E 96% dos parados pela SCU eram negros ou hispânicos. Tiveram mais sorte do que Amadou Diallo. Ao menos saíram vivos.