08/03/2000 - 10:00
João é muito rico, faz documentários sob a ótica dos excluídos e é irmão de Walter Salles, diretor de Central do Brasil. Até explodir o caso da ajuda ao traficante Marcinho VP era tudo o que se falava desse herdeiro do Unibanco, filho do embaixador Moreira Salles. Ao dar uma espécie de bolsa de R$ 1.200, durante quatro meses, ao ex-dono das bocas da favela Dona Marta, João Moreira Salles tocou numa ferida exposta que a sociedade dita civilizada finge ignorar. Para filmar Notícias de uma guerra particular, João subiu o morro e se aproximou de Márcio Amaro de Oliveira, um falante chefe do tráfico, garoto como milhares de outros dos morros cariocas, que sonhou um dia ser modelo e desenhista. Marcinho VP é um foragido da Justiça, condenado a 42 anos de prisão, acusado de vários assassinatos. O que João Salles tentou fazer, ao financiar um livro de memórias do traficante, foi separar o homem Márcio do Vapor (VP). “Ele conseguiu enxergar por trás da máscara da violência um coração sensível à pedagogia da paz”, admitiu o coordenador de segurança pública do governo do Rio, Luís Eduardo Soares, que quase perde o cargo por suas declarações. Como mostra o documentário de Salles, cocaína não nasce no morro e arma não é fabricada em favela. Os pontos-de-venda controlados por gente como Marcinho VP são a ponta visível de um esquema internacional que movimenta bilhões de dólares e cujos controladores de fato estão muito longe das valas negras e das condições subumanas a que é submetida há várias gerações a família Oliveira.
Antes de insinuar um envolvimento criminoso de João Salles, o governador Anthony Garotinho e seu secretário de Segurança, Josias Quintal, deveriam ver Notícias de uma guerra particular. Ficariam envergonhados. Lá fica claro que os milhões de favelados estão muito mais próximos do “pessoal do movimento” do que de qualquer autoridade constituída. É ao traficante que o morador recorre quando precisa de ajuda. Desde dinheiro para enterrar um parente ao material escolar do filho, a compra de cigarro ou de papel higiênico. Os garotos a partir dos cinco anos começam a se imaginar no tráfico, a única saída possível para eles. É impressionante perceber a falta total de perspectivas de quem está no meio daquele tiroteio. A possibilidade concreta de poder, ascensão e respeito é aderir ao bando armado. Nada de escola, igreja, emprego.
Márcio Oliveira é mais articulado que a média dos traficantes. Ao manter contato com ele, João Salles percebeu que poderia ajudar a mudar um destino original mais previsível que final de novela: a morte violenta. O documentarista, durante os seus vários contatos com o traficante, foi percebendo que ele queria encontrar alternativas fora do tráfico. “Ele me pedia livros, leu Machado de Assis, leu Camus, queria se educar, ser melhor.”
A relação entre os dois mundos caiu como uma bomba na cabeça de João Salles, que já foi até convocado para depor na CPI do Narcotráfico. Marcinho virou, de repente, o inimigo público número 1 da polícia do Rio. Para justificar sua atuação à frente do tráfico, ele ensaia um discurso supostamente politizado: “Estou aqui porque foi o único meio que encontrei para defender meu povo da opressão.” Afirma ter simpatia pelo movimento zapatista, do México, e chegou a anunciar que voltará para implantar o Movimento Social Revolucionário pela Favelania – neologismo que junta favela e cidadania. Difícil é achar quem leve a sério suas intenções. “Essa de líder revolucionário é o maior delírio. Tentar extrair do tráfico um movimento desse tipo não tem nenhuma sustentação”, critica o sociólogo Ignácio Cano, da ONG Viva Rio. “Não acredito que os traficantes tenham força político-ideológica”, avalia o deputado federal Fernando Gabeira (PV). No documentário, isso fica evidente em depoimentos como os do ex-delegado Hélio Luz, então chefe da polícia do Rio. “O nível de organização do tráfico é primário.” Numa fala para lá de lúcida, Luz diz que o papel da polícia é apenas manter o morro em paz e os traficantes não passam de um bando de miseráveis se matando.
Encravada em pleno bairro de Botafogo, na zona sul, a favela do morro Dona Marta tem hoje cerca de oito mil habitantes que vivem em situação precária. Em vários pontos o esgoto corre a céu aberto e derrama-se pelas escadarias. Mas o pior pesadelo é a violência, praticada tanto pelo tráfico como pela polícia. Há duas semanas, o morro foi invadido pela quadrilha de Zacarias Gonçalves Neto, o Zaca, que tomou o controle do tráfico do grupo de Marcinho.
Toque de recolher – Durante vários dias, a comunidade viveu momentos de terror. Os bandidos proibiram o uso de roupas vermelhas (para evitar qualquer associação com o Comando Vermelho, facção de VP) e implantaram o toque de recolher: todos tinham de estar em casa antes das dez da noite. “Quem conhecia Marcinho VP saiu do morro”, conta um morador protegido pelo anonimato. As próprias autoridades admitem a gravidade da situação. “Cria-se um vácuo com a ausência do Estado e o despotismo dos traficantes”, reconhece Luiz Eduardo Soares. Oriundo do Viva Rio, foi Soares quem convenceu Garotinho a fazer, no início do governo, uma espécie de “ocupação social” do Dona Marta, mobilizando agentes do Estado para ouvir as reivindicações dos moradores e atendê-las.
A atuação deveria servir de modelo para intervenção em outras favelas, mas fracassou. Foi esse ambiente que atraiu João Salles. Impressionado com o que viu, resolveu estreitar os laços com a comunidade. Durante um ano frequentou a favela para dar aulas sobre a pré-Renascença. Mas o ponto mais polêmico é mesmo sua ligação com Marcinho VP. “Considero todo esse glamour com o bandido uma palhaçada”, critica o secretário Josias Quintal. O coordenador de segurança rebate: “O João apostou na possibilidade de o ser humano se reencontrar consigo mesmo.” Entre seus dois subordinados, o governador Garotinho teve o mérito de tirar a questão do abstrato com uma declaração de obviedade esclarecedora. “Marcinho VP é um criminoso e por isso deve ser preso”, definiu. Resta saber se, além de caçar e manter os bandidos presos, o governo do Estado irá agir para que os milhares de candidatos a Marcinho não passem no vestibular do crime.
“O Estado brasileiro jogou a toalha”
ISTOÉ – O fato de você ter ajudado um traficante gerou muita polêmica. Se não do ponto de vista legal, mas ética e moralmente você não ultrapassou uma fronteira perigosa?
João Moreira Salles – Do ponto de vista jurídico, o que houve foi a contratação de um livro. Não há empecilho nisso, mesmo com um foragido da lei. Do ponto de vista moral e ético realmente me sinto à vontade. Acho que é legítimo tentar compreender as razões de quem optou pelo caminho errado. Enquanto a gente não entender as razões, Márcios VPs surgirão todos os dias no Rio. O documentarista quer compreender a realidade e às vezes precisa penetrar nela, ultrapassar os limites do conforto e do que seria mais prudente.
ISTOÉ – Como foi na favela?
Salles – São quatro anos de trabalho e a constatação de que o crime exerce um fascínio na cidade. Um fascínio sobre meninos de 11 a 14 anos, que olham para o mundo legal e para o da criminalidade e acham que este último é uma opção melhor. Isso é uma tragédia. Me vi diante de um personagem da cidade, um bandido, que se dispôs a contar sua história. Não quis glorificá-lo.
ISTOÉ – Esse risco existiu?
Salles – Acho que toda essa amplificação da mídia é que faz com que ele se torne um mito. Não sou responsável por isso. O resultado prático da minha relação com a favela é o Notícias de uma guerra particular. Se há uma coisa que o documentário não faz é glorificar a posição do bandido.
ISTOÉ – Como foi sua relação com Marcinho VP?
Salles – Olha, eu tive uma relação com o Dona Marta, que é muito maior que a minha relação com o Márcio. Se a gente ficar nesta história do Márcio, vai parecer que eu gostei do bandido. Eu não gostei do bandido. Eu fico espantado com a dificuldade de uma parte da opinião pública de entender que um gesto possa se resumir apenas à solidariedade, como se tivesse que ter alguma coisa por trás, algum esqueleto no armário.
ISTOÉ – Como insinuações de que você consome drogas e Márcio VP forneceria para você?
Salles – Isso. O que há é apenas a tentativa de entender, não compactuar. O humanismo se baseia nisso.
ISTOÉ – O problema do tráfico está relacionado à falência do Estado…
Salles – Não é nem a falência do Estado, é a desistência. O Estado brasileiro desistiu, jogou a toalha. A falência supõe uma tentativa que não deu certo. Não estou falando de nenhum governo especificamente, do governador Garotinho, que está contra mim, nem de FHC. Estou falando de 500 anos de História. Você vê isso na desordem urbana, nas invasões, nos esgotos clandestinos, na devastação ambiental. O Estado não tem mais capacidade de ordenar o País, então surgem esses fenômenos como o evangélico, as ONGs, as associações de moradores, e alguns do mal, como o tráfico. São substitutos do Estado.
ISTOÉ – Sua ajuda ao Márcio VP se limitou à bolsa para o livro?
Salles – Só falam dos R$ 5 mil que dei para ajudar um bandido a escrever um livro. Esse valor não corresponde a meio por cento do que faço em outras áreas. Tenho um projeto chamado Villa-Lobinhos, orçado em R$ 1 milhão, que dará bolsas para músicos. É um programa de excelência, para provar que um menino da Grota do Surucucu, uma favela em Niterói, pode se tornar um concertista. Nove meninos vão ganhar bolsa, auxílio para alimentação, aulas particulares e vão voltar à escola. Todo ano escolheremos outro grupo. Também tenho outro projeto de R$ 300 mil para plantar árvores em subúrbios. Mas ninguém fala disso.
Daniel Stycer