Cinco séculos de colonização não bastaram para eliminar um dos piores problemas dos países andinos: a discriminação dos índios da região por parte dos colonizadores brancos e seus herdeiros. O conflito, em maior ou menor escala, se repete até hoje e acaba de levar à Presidência da Bolívia o índio Evo Morales. No Peru do escritor José María Arguedas, a situação não é diferente. E é Arguedas quem dá voz ao lamento dos andinos oprimidos desde tempos em que o poder, para os nativos, estava tão distante quanto os ecos de seus gloriosos antepassados incas. Em Os rios profundos (Companhia das Letras, 320 págs., R$ 46,50), o autor peruano elaborou, ainda em 1958, uma das mais belas canções daqueles cuja voz não era ouvida, uma canção que se mantém atual e rejuvenescida pelos novos rumos que o altiplano tomou nas últimas décadas.

Arguedas gostava de se autodefinir como “um indivíduo quéchua moderno”, para incômodo maior da classe dominante peruana. E é através do narrador do livro, o jovem Ernesto, que ele revela os meandros da discriminação disfarçada. Filho de advogado menor, à deriva pelas pequenas cidades andinas, transitando mestiçamente entre as duas culturas, ele busca desesperadamente seu lugar em uma sociedade estratificada, que não sabe como classificá-lo. Os momentos de introspecção são muitos, assim como os de profundo lirismo, em especial na descrição melancólica das altas paisagens e seus moradores. Tudo no altiplano é mais difícil, é arrancado à força da pedra e na pedra vai sendo gravado ao longo dos séculos. Para Ernesto, o segredo da harmonia social precisa passar obrigatoriamente pela compreensão das pedras e suas histórias. Pena que até hoje seus conterrâneos não tenham alcançado o rico potencial da amálgama que não se completa.