Você ainda não percebeu, mas tem gente de olho na sua vida financeira. Ou melhor, eles já sabem muito. Vários bancos, supermercados e empresas de serviços iniciaram um processo de rastreamento de dados sobre hábitos de consumo, endividamento, comprometimento de renda e possibilidade de inadimplência de seus clientes. O fenômeno está só no começo no Brasil, mas é uma tendência mundial que utiliza a informática para fazer um raio X da clien-tela e aumenta a segurança das empresas. Mas coloca em questão o direito à privacidade. Um caso típico do que começa a surgir no País é o Credit Bureau Scoring, sistema lançado pela Centralização de Serviços de Bancos (Serasa), empresa privada que tem 72 bancos acionistas. O programa, utilizado no momento por 25 instituições e empresas, entre elas o BankBoston, American Express, Vésper SP e Pão de Açúcar, levanta o salário, endereço, dívidas e até mesmo cheques pré-datados emitidos por uma pessoa. O levantamento é feito através da troca de dados de três mil empresas e a partir daí o programa fornece uma pontuação de 1 a 1000 para cada cliente pesquisado. O que influirá na aprovação ou não de um empréstimo e nas taxas de juros a serem cobradas. "Quanto menor a pontuação, maior o risco de uma pessoa se tornar inadimplente nos próximos 12 meses. É uma forma de a empresa se proteger", justifica Ricardo Loureiro, supervisor de produtos da Serasa. O jurista Gofredo da Silva Tel-les considera o projeto uma invasão de privacidade, que viola o direito ao sigilo bancário. "Eles não podem levantar toda a vida de uma pessoa", alega Telles.

A garantia de sigilo é assunto que começa a pegar fogo, principalmente nos Estados Unidos. O jornal The New York Times publicou na semana passada uma matéria onde entidades de defesa à privacidade afirmam estar preparando um relatório sobre as práticas da empresa de anúncios na Internet DoubleClick, que será entregue ao governo. Com 1,5 mil clientes, a companhia tem um programa que rastreia os sites mais visitados por internautas, o horário e o provedor de acesso. A partir daí, lança anúncios com produtos e serviços de interesse do internauta. A estratégia tornou-se mais agressiva depois que a DoubleClick comprou no ano passado a empresa de bancos de dados Abacus Direct, que detém informações coletadas fora da Internet sobre os hábitos de consumo de clientes de grandes empresas varejistas. O poder de fogo para atingir o consumidor ideal ficou ainda maior com o cruzamento de dados. As regras da DoubleClick determinam que o esquema dos anúncios personalizados precisa ser autorizado pelo internauta, mas os críticos da estratégia alegam que o consumidor pode não estar a par de como é feito o levantamento do seu perfil. Já a empresa argumenta que a seleção de anúncios favorece o consumidor, pois vai direto aos assuntos de seu interesse. E evita a repetição de propagandas. A batalha entre defensores do sigilo e aqueles que consideram que o estudo do comportamento de um cliente traz vantagens para ele mesmo promete esquentar entre os americanos. Por aqui, no entanto, é praticamente ignorado pelos consumidores. "O Brasil ainda não se deu conta de que a privacidade está em jogo", declara o delegado Mauro Marcelo Lima, especializado em crimes de alta tecnologia. Para ele, cruzar dados para levantar o perfil de um cliente e sua possibilidade de se tornar inadimplente é uma clara invasão na vida da pessoa.

Polêmica
O assunto promete muita discussão. O jurista Ives Gandra da Silva Martins lembra que o sigilo de dados é garantido pelo artigo 5 da Constituição, mas pode levar a um círculo vicioso. "Ao tomar o empréstimo ou preencher um cadastro, o cliente deve pedir que as informações não sejam divulgadas. Só que nesse caso corre o risco de simplesmente não conseguir o empréstimo porque o lojista optaria por não se arriscar", adverte. O consumidor, por outro lado, pode obter vantagens com a abertura de seus dados. O novo programa da Serasa, por exemplo, se encaixa na política que o Banco Central adotará a partir de março, na qual exigirá que os bancos criem um ranking do risco de crédito dado para cada cliente. A idéia é diminuir o provisionamento, a reserva de dinheiro para inadimplentes, e jogar mais dinheiro na economia. O próprio BC admite que informações sobre os clientes dos bancos pode ser obtida também de fonte externa. "A meta é que os maus pagadores sejam afastados do mercado e haja mais dinheiro no mercado", afirma o diretor de fiscalização, Carlos Eduardo de Freitas. O BankBoston informa que em breve adotará a política para reduzir as taxas de juros. "A média no cheque especial no mercado é de 10% ao mês. Ela poderá cair para 5% para os clientes com bom perfil pagador. O sigilo bancário protege quem não tem costume de pagar as contas", dispara Márcio Nigro, diretor de crédito da instituição. Um dos problemas, no entanto, é saber até onde as informações levantadas por um sistema de pontuação são efetivamente corretas. Um consumidor pode simplesmente guardar dólares em casa e preferir não informar o assunto para o banco. Terminará prejudicado e com menores chances de crédito. A coordenadora do departamento jurídico do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Flávia Lefévre Guimarães, lembra ainda que os dados negativos enviados ao Serasa – como atraso no pagamento de prestações – são computados automaticamente, sem direito à defesa por parte do consumidor. "Já o novo sistema de pontuação é legal, mas não pode ser usado para vetar o financiamento de uma linha telefônica. A Lei Geral de Comunicações garante o livre acesso", lembra Flávia. A exceção seria no caso de o cliente já estar inadimplente com outra operadora. A Vésper SP nega que utilize o sistema de pontuação para vetar linhas. "A empresa só pretende agregar serviços aos clientes com maior potencial", diz Eduardo Octaviano, diretor de comunicação.

Quanto aos estudos sobre os hábitos de compra dos consumidores, uma das grandes vantagens é estimular o consumo por impulso, ou de produtos não-essenciais. Não é à toa que o Pão de Açúcar acaba de lançar seu programa Mais, onde as pessoas que se inscreverem voluntariamente receberão um cartão que enviará para a central de dados os itens das prateleiras que o cliente mais compra, assim como seu endereço e faixa salarial. "Poderemos melhor atender nossos consumidores e deixar mais à vista os produtos com maior procura", justifica José Roberto Tambasco, diretor-executivo. Durante o programa de teste em Campinas, por exemplo, as vendas do Pão de Açúcar cresceram 30%. Mas liberação do perfil do comprador pode causar alguns problemas. Nos Estados Unidos, por exemplo, a rede de supermercados Vons foi processada por um cliente que escorregou no chão de uma das lojas. Ao acessar seu banco de dados, a empresa verificou que o consumidor comprava bebidas alcóolicas com frequência e argumentou que ele estava bêbado no momento da queda. Liberar informações sobre hábitos de consumo pode beneficiar ou não o consumidor. Uma das vantagens, lembra o presidente da empresa de pesquisas Indicator, Álvaro Ferraz, é ter um atendimento mais personalizado. Mas o cliente também fica vulnerável ao estímulo de consumo. "Ele terá de escolher entre sua privacidade ou não." Até agora o brasileiro mostra não estar muito preocupado com quem o bisbilhota. Chegou o momento de abrir os olhos.