Os festejos para dar nome a garotos da nova geração kayapó, na aldeia de Gorotir-e, no sul do Pará, foram interrompidos por rituais de guerra. Pintados para combate, os homens da tribo se concentraram na Casa dos Guerreiros, o espaço no qual são tomadas as decisões entre os kayapós, povo indígena que teve seu primeiro contato com os brancos em 1936. "Estou pisando em terra kayapó e vou continuar em cima dela. Aqui branco só entra quando índio deixa", avisa o guerreiro Akróêtyk. "Índio não fala muito não. Resolve no instante. Se demorar para anular o papel, vai ter guerra no Xingu", eleva o tom Kaiôrê, chefe dos guerreiros. "Amansaram os kayapós. Não sabemos brigar com papel, mas temos a bodurna", explica, com tranquilidade, Toto’í, o cacique velho, um dos poucos remanescentes da época em que a tribo vivia às margens do rio Araguaia. "Quando o branco chegou no Araguaia, os índios subiram pelo mato. Daqui ninguém sai."

Eles vivem no sul do Pará, entre os rios Xingu e Fresco, numa área coberta por florestas que se espalha por 2,459 milhões de hectares. Desde outubro de 1991, a reserva está demarcada e homologada pelo governo federal. Por isso, a revolta dos kayapós faz sentido. Isolados na mata, souberam que suas terras haviam sido vendidas para a empresa americana Allied Cambri-dge LLC, por US$ 1 milhão, em setembro de 1998, numa transação que englobou, no total, 3,176 milhões de hectares, área maior que a Bélgica. Famosos pela ferocidade com que defendem seus valores, eles não conseguem entender como o negócio foi escriturado e registrado pelo cartório de São Félix do Xingu, município ao qual pertence a reserva. Só garantem que ninguém vai tomar posse do que é deles. "No papel também tem de ficar só nosso. O americano que fique com a terra dele lá longe. Se não resolver depressa, vamos começar colocando fogo no cartório", ameaça o guerreiro Kukoipati, também de Gorotir-e. Ela é a maior das oito aldeias da reserva, que abriga quase cinco mil índios e tem 25 postos de vigilância em suas principais divisas.

Embora more em São Félix do Xingu há 27 anos, a dona do cartório local, Maria do Socorro de Souza, garante que não sabia da existência de uma imensa reserva indígena na região. "Os registros mostram que essas terras são das fazendas Carapanã e Santa Margarida, do senhor Jovelino Nunes Batista", diz ela. "A transação que registrei é absolutamente legal. Se começarem a levantar falso testemunho contra mim, vou processar os órgãos do governo, que não me avisaram sobre a reserva." O negócio, revelado pelo jornal O Liberal, de Belém (PA), foi fechado, no entanto, com base em títulos questionáveis, a partir de uma cadeia de propriedades que supostamente começou em 1843, com o alferes Joaquim Conceição de Menezes. A presidente do Instituto de Terras do Pará (Iterpa), Dulce Leoncy, garante que não existe nenhuma propriedade deste tamanho no Estado. Com o auxílio de satélites, os técnicos do instituto já comprovaram que as fazendas de Jovelino foram "montadas" em cima da reserva indígena. "Um dos maiores problemas do Pará se chama cartório. E o cartório de São Félix do Xingu é a coqueluche dos títulos falsos", acusa Leoncy.

Nos arquivos do Iterpa, o proprietário Jovelino Nunes Batista só existe porque o instituto entrou com uma ação na Justiça, em julho de 1997, pedindo o cancelamento dos registros das fazendas Carapanã e Santa Margarida. "Soubemos que esses títulos falsos estavam circulando porque o advogado da empresa americana havia entrado com um pedido de informação sobre as terras", esclarece Leoncy. "A Justiça, porém, não tomou nenhuma providência." Em São Félix do Xingu, uma cidade de 49 mil habitantes, ninguém conhece Jovelino, que fez o fabuloso negócio através de um procurador, o engenheiro químico Amir dos Santos Jobim, de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, a mais de três mil quilômetros de distância. "Se existisse um homem com tantas terras, todos saberiam. A maior propriedade da região tem 500 mil hectares e está sob litígio há muitos anos", atesta o prefeito Antonio Levino (PTB). O curioso é que, em alguns documentos usados na transação, consta que Jovelino é morador da cidade.

Bagatela
A identidade do comprador também é nebulosa. As terras foram adquiridas pela Allied Cambridge LLC, de Nova York, através de sua subsidiária no Brasil, a Worldwide Ecological Handling Timber Corporation Ltda. O negócio foi fechado pelo equivalente a US$ 1 milhão, o que transformou o valor de cada hectare em R$ 1,20, pela cotação da época. Foi uma bagatela. Na região, o valor do hectare gira em torno de R$ 250. Para criar a Worldwide, a Allied comprou ações de uma empresa sediada em São Paulo, a Moeda Empreendimentos Ltda., e simplesmente alterou seu nome. O contrato social registrado na Junta Comercial de São Paulo revela que a empresa tinha planos audaciosos para a área, cujas reservas de ouro e mogno transformaram alguns caciques kayapós em milionários na virada da década de 80 para a de 90. "Nós já tivemos avião, casa na cidade, mas perdemos todo o dinheiro porque ficamos nas mãos dos brancos", diz o cacique Àjabôro, da aldeia Moikàrakô. "As novas gerações só deixam a área ser explorada de novo se for para o benefício de todos", completa o guerreiro Bepkôti, de Gorotir-e.

Os kayapós, evidentemente, não concordam, mas a Allied montou um projeto próprio para a região. Ele começa pela exploração de madeira, ouro e metais preciosos, passa pela implantação de fazendas agroindustriais e inclui a promoção de "pesquisas científicas farmacomedicinais, bem como bancos genéticos da flora e da fauna em geral, por meio de convênios com instituições, universidades, órgãos governamentais, tanto brasileiros como estrangeiros". Para promover o bem-estar dos potenciais moradores, o projeto prevê a construção de hospitais, escolas e moradias populares. O procurador da empresa no Brasil, o advogado José Carlos Paes de Barros Júnior, informa, porém, que o registro amplo do projeto de exploração foi uma iniciativa sua, uma questão formal ao montar a empresa, pois o objetivo se restringiria à realização de pesquisas junto à flora e à fauna.

O advogado esclarece que a empresa planejava investir US$ 300 milhões na área, recursos que estavam sendo captados junto a bancos americanos. "A Allied foi criada exclusivamente para obter os financiamentos a fundo perdido em instituições como o Lihaman Brother’s Bank. São recursos que os bancos dos Estados Unidos disponibilizam para investimentos na Amazônia, associados a projetos humanitários", afirma Paes de Barros. O advogado, no entanto, jamais conheceu os donos da Allied. Não sabe sequer seus nomes. "São quatro ou cinco empresários americanos, meu contato é só com o procurador deles, através de papéis", assegura. Paes de Barros também não estranha o fato de a empresa usada para montar a subsidiária no Brasil, a Moeda Empreendimentos Ltda., ter existido apenas no papel. No lugar no qual deveria ter funcionado a sede da Moeda, uma casa na periferia paulistana, a moradora explicou que seu ex-marido usava o endereço como se fosse o de uma firma. "Ele fazia pequenos serviços de contabilidade e precisava dar no-ta fiscal. Não pode ser sócio de nenhum negócio grande, pois anda de ônibus e não tem dinheiro nem para comprar uma bicicleta", diz a moradora.

Anulação
Apesar de as circunstâncias não serem favoráveis para a Allied, seu representante no Brasil garante que a empresa está no papel de vítima. "O cartório tem fé pública. Se perdermos o negócio, vamos processar o cartório e todos os órgãos do governo que se omitiram", desafia Paes de Barros, sem mostrar documentos, ressaltando que havia recebido o sinal verde do Iterpa, da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O engenheiro Amir Jobim, que representa o suposto vendedor Jovelino, bate na mesma tecla. Apesar de nunca ter-se encontrado com o suposto latifundiário, pois teria sido indicado para intermediar a transação por um "profissional da área", Jobim ressalta que tudo foi feito dentro dos trâmites legais. "Se este negócio for desfeito, quem perde é o Brasil. O projeto dos americanos é fabuloso", elogia.

O primeiro passo para anular a transação já foi dado pelo procurador da República Ubiratan Cazetta, que está investigando o caso. "Há inclusive a suspeita de que o Jovelino seja um ‘fantasma’ criado para dar respaldo a esta operação", afirma o procurador. Se depender de outros órgãos governamentais envolvidos na questão, os kayapós também não precisarão usar a bodurna. Esse é o sonho de Kôkonan, uma das oito índias que quebraram a tradição de que mulher não tem acesso à Casa dos Guerreiros. Convocada pelo cacique para uma participação no segundo dia de reunião, Kôkonan levou a neta Paipókun. "Raspei a cabeça para entrar na briga se for preciso. Esta terra era dos meus avós e vai ser dos meus netos", esbravejou Kôkonan. "Os homens precisam caçar e pescar, mas vão trabalhar mais com vigilância até a Funai dar um jeito nos americanos."

Em Brasília, o diretor de assuntos fundiários da Funai, Roque Laraia, avisou que os kayapós podem ficar tranqui-los, pois a venda não tem nenhum am-paro legal. Ele assegura que não há nenhuma chance de que um documento liberando a venda tenha saído da fundação. "Só posso acreditar que se trata da ação de vigaristas que não sabem com quem estão mexendo. Os kayapós não toleram a presença de estranhos em suas terras", comenta Laraia. O ministro de Política Fundiária, Raul Jungmann, que começou em novembro um amplo programa de combate à falsificação de títulos de terra no País, lembra que o cartório de São Félix do Xingu está entre as 50 instituições que ele denunciou como suspeitas de fraudar documentos. Sobre a possibilidade de, em qualquer instância de seu Ministério, os envolvidos na negociata terem obtido aval para a operação, Jungmann fica tão irritado que assume um discurso similar ao dos kayapós. "Se alguém cometeu alguma bandidagem, tá frito."