25/08/1999 - 10:00
Viver nos anos 90 é tropeçar em sexo em todos os lugares o tempo todo. Mensagens eróticas, ora refinadas, ora rombudas, escorrem dos outdoors, de cartazes nos muros, das telas de televisão, de filmes e de músicas, em tal quantidade que arriscam se tornar banais e até invisíveis. "Uh, Tiazinha, mexe essa bundinha, e vem", cantam as crianças em festas de aniversário. Nas revistas-brinde dominicais, recolhidas de manhã com o pão e o leite, garotas e garotos de programa anunciam curto e claro entre páginas amenas de decoração. "Pelos fundos", acena uma jovem de lingerie exígua e bumbum empinado. "Chupetinha", telegrafa uma outra, de lábios entreabertos. Num só capítulo da novela das 8 da Globo, Suave veneno, quatro casais foram para a cama: "A minha novela, em termos de abordagem do tema, está nos anos 80. Quem se impressiona com atrizes de calcinha e sutiã quando o Ratinho mostra uma mulher fumando pela vagina?", sustenta o autor Aguinaldo Silva, numa comparação irrespondível. Mas não é só no Brasil que o sexo é onipresente. No cinema americano, a grande sensação é De olhos bem fechados, de Stanley Kubrick, que oferece a nudez hard-core do casal Cruise-Kidman com um tempero extra: eles são personagens, mas pode ser que estejam transando de verdade. No seriado americano Sex and the city, amigas revelam pormenores do que viveram na cama – com menos detalhes, é claro, do que os depoimentos do presidente Bill Clinton à nação, em cadeia nacional, sobre seus encontros com a estagiária Monica Lewinsky. Kubrick, Clinton, Ratinho e garotos de programa não são letrinhas da mesma sopa, mas os olhos saturados do público podem misturá-los. O grande circo do sexo nos tem deixado mais confusos do que excitados. Por isso, é necessário maturidade e saúde mental para manter vivo, na nossa própria cama, o dom precioso do desejo.
A onipresença do sexo tem muitas explicações. Há quem credite ao esforço de prevenção da Aids o tom explícito de hoje. "Como as campanhas de prevenção tinham de ser bem didáticas, a mídia escancarou o sexo para que não restassem dúvidas", analisa Carmita Abdo, psiquiatra e coordenadora do Projeto Sexualidade da Universidade de São Paulo. Para o escritor Marcelo Rubens Paiva, autor da peça Da boca pra fora – e aí comeu?, sobre os relatos sexuais de homens e mulheres, o sexo acabou ocupando o lugar de outros assuntos que minguaram. "A política, a religião e o próprio casamento caíram em descrédito. A única instituição que não caiu – e isso não significa que as pessoas estejam fazendo mais do que antes – é o sexo." Há outra hipótese bem visível para o fenômeno. Entregar em público detalhes que, antes, só tinham sentido entre quatro paredes rende popularidade e, sobretudo, dinheiro.
O sexo era reprimido para que as energias dos trabalhadores se convertessem em produção de riquezas, denunciaram de diversos ângulos teóricos como Karl Marx e Wilhelm Reich e os jovens incendiários de 1968. Trinta anos depois, ele se tornou um bem de consumo. Como informa o escritor francês Jean-Claude Gillebaud em seu A tirania do prazer (Editora Bertrand Brasil, 434 págs.), os americanos gastaram em 1996 US$ 8 bilhões em vídeos, filmes, peep shows e apetrechos eróticos – mais do que toda a arrecadação de Hollywood.
Mercadoria – A intimidade tornou-se uma mercadoria manipulada com habilidade por artistas, símbolos sexuais e até por políticos. Em troca de comentários sobre compulsão sexual de seu marido, a ex-mártir Hillary, atual candidata ao Senado americano, cravou sua imagem na edição número 1 da revista Talk, milionário empreendimento editoral da produtora de cinema Miramax. Para Hillary, basta uma duvidosa teoria sobre traumas de infância na conduta sexual dos adultos. Para cidadãos menos influentes, aparecer requer revelações substanciosas. Não por acaso, uma legião de pessoas comuns dispõe-se a receber, de portas abertas, as perguntas mais invasivas da imprensa. Mas aqui, como em tantos outros territórios, hoje, o show é maior do que a vida.
Num seminário do Ministério da Saúde, dia 10, em Brasília, sobre a influência da mídia na sexualidade do jovem, a sexóloga, apresentadora e ex-deputada Marta Suplicy identificou entre essas influências um crescente desprezo pelo parceiro real, de carne e osso, ora tornado dispensável, como no caso de Xuxa, ora obscurecido por um príncipe de mentirinha, capaz de preencher todos os desejos. "O encontro amoroso é único e deveria ser pessoal e particular, mas passa a ser procurado e sonhado como o proposto pelas novelas ou pela vida privada dos ídolos, publicada em detalhes pela imprensa", descreve.
Os valores que sustentam as relações amorosas acusam o baque. É como se, excessivamente mostrado ou falado, o sexo não mais aproximasse as pessoas. "A rotatividade e a exposição da sexualidade colaboram para enfraquecer os laços entre os parceiros", alerta a terapeuta Sheiva Cherman, do Rio. "Todos se perguntam: a união só é feita de prazer ou há um vínculo que pode suportar frustrações?" O prazer, que chegou a ser vivido como um direito, tornou-se uma ditadura, lamenta o psicólogo Márcio Schiavo, doutor em sexualidade e mídia, da Faculdade Gama Filho, no Rio. "Quem não tem ou não mostra que tem prazer então é porque sofre de alguma deficiência", ele ironiza. O casal Aretuza e Roger Lemos é o exemplo dessa perseguição. Atores de filmes pornôs, há dois anos eles tentam manter normal o sexo que fazem sem bilheteria. Para garantir a excitação, tiveram de dividir o colchão com a jovem Simone Nascimento, 21 anos, que trabalha com eles em filmes. "Em cena só consigo ejacular se me masturbo, em casa bastam 15 minutos de relação", revela Roger. O stress é tal que Simone, há três semanas nesses lençóis, quer estudar Psicologia. "Gosto de transar com eles, mas em cena ainda tenho medo."
Os modelos de perfeição afetam também adultos expostos a radiações menos radicais e com recursos para chegar aos consultórios de sexologia. "As pessoas sabem o que é certo, mas vendo aquelas cenas na tevê e no cinema se cobram desempenho", explica Maria Helena Guerpelli, diretora do Instituto Kaplan, ONG especializada em sexologia. A exigência desse IS0 9000 do sexo reflete uma cultura que cobra competência e produtividade para a aceitação social. "A competição invadiu a intimidade a ponto de, agora, as pessoas terem de competir consigo mesmas", avalia Carmita Abdo. O resultado é muitas vezes culpa ou frustração. "O homem está confuso. No meu caso, mais de uma vez depois de uma transa eu pensei que era melhor ter ficado em casa", revela o cartunista gaúcho Adão Iturrusgarai, 34 anos, autor da tira Aline. A personagem namora Pedro e Otto e protagoniza um triângulo amoroso.
Se o sexo vivido tem menos glamour que o exibido, muita gente mascara o "fracasso" em blablablá. "Algumas pessoas que não têm prazer vão se compensar com a verbalização. Fala-se do que aconteceu ou do que se gostaria que tivesse acontecido", diz o estudioso de sexualidade Márcio Schiavo. A promoter Rô Nascimento, do Rio de Janeiro, adora revelar o que rola na sua cama. "Não vejo nada de mais em falar da minha intimidade. Eu dou as cartas e tomo a iniciativa nas relações. A maioria das minhas transas foi fantástica. Mas tive algumas decepções, como uma vez que fui para a cama com um homem e ele não gostava que eu me mexesse", revela.
Exagerados – Assediadíssima, Scheila Carvalho, a do É o Tchan, já percebeu que há um certo exagero. "Tem muita gente que na hora H não é nada daquilo que divulga. Eu sou superpaquerada, mas acho que muitos só fazem isso pelo status da ‘morena do tchan’ e não por gostar de mim, ou estar a fim de mim." Até mesmo a desembaraçada apresentadora do MTV Erótica, Ana Bárbara Xavier, a Babi, sofre com o descompasso. "O sexo está muito mais na mídia que na cama. Minhas amigas me falam que quase não têm tempo de transar. Eu mesma moro no Rio, trabalho em São Paulo, mas meu marido fica lá", diz.
A hiperexposição tem efeito anestésico. "Sexo não é fundamental para mim", já admitiu a apresentadora Angélica. "Não tenho mais saco para isso. Não quero saber quem goza ou quem transa com quem. Vou parar de ler jornal e, talvez, passe a escrever novelas de época", ameaça o autor de Suave veneno, Aguinaldo Silva, revoltado. A dose é tamanha que se perdeu na confusão a própria definição de sexo. Afinal, se para Clinton sexo oral não é relação sexual e a Internet dispensou o contato genital, será que fazemos o que achamos que fazemos? "Hoje 10% da população faz sexo sem fazer sexo", surpreende o psicólogo Oswaldo Rodrigues Jr., do Instituto Paulista de Sexualidade. Ele se refere aos navegadores e aos sadomasoquistas que, ao sentir prazer com a humilhação, nem precisam transar.
Felizmente, os graus de resistência variam e muitos conseguem manter o desejo. "Para isso, é preciso saber respeitar sua identidade sexual, sem se pautar por modelos externos, evitar comparações com o comportamento alheio e não temer ser excluído socialmente por não cumprir as fórmulas", aponta a psiquiatra Carmita Abdo. É preciso, ainda, preservar, em meio à balbúrdia e à obviedade, um pouco de mistério e magia. A jovem Luana Vilutis, 21 anos, estudante de Ciências Sociais em São Paulo, conhece a importância desse ingrediente e o preserva cuidadosamente. "Na primeira vez que eu transei com meu namorado, estava na cara que a gente queria ir para a cama, mas fomos antes ao cinema, depois fomos jantar e só depois fomos dormir juntos. Acho gostoso, a gente toma um vinho…" Para o psiquiatra Jairo Bouer, que divide com Babi o MTV Erótica, informação não é empecilho para essa atmosfera. "O mistério está no encontro", diz Bouer. "Vai ser desvendado na hora em que se apaga a luz e se começa a explorar o corpo da outra pessoa."
Melhor agora – Antes de se cristalizar em padrões inatingíveis e numa enxurrada de imagens e cifras, a nova moral sexual trouxe ajudas importantes, sobretudo para as mulheres, reduzidas no passado à condição de cofres de sua própria virgindade. "Não dá para comparar a vida sexual das mulheres da geração da minha avó com a dos dias atuais", diz Marta Suplicy. Muitos homens também souberam se beneficiar de novos valores, em vez de interpretá-los como uma ditadura. Os bons entendedores livraram-se justamente da obrigação da performance. Juntos há 24 anos, o contador José Roberto Prado, 52, e a psicóloga Cristina, 46, afirmam que essa consciência ajudou a superar momentos difíceis. "Hoje nós sabemos que sexo não é só penetração, mas também carinho e preocupação com o prazer do outro", ela diz. "Não me exijo nenhum padrão", garante o dentista Carlos Henrique Dutra, 25 anos. "O principal é se respeitar. Nunca transei sem estar a fim", diz sua namorada, a estudante Melissa de Souza, 22 anos. Descobertas farmacêuticas vieram também em socorro de quem deseja mais qualidade no sexo. Lançado há um ano no Brasil, o medicamento Viagra vendeu cinco milhões de pílulas, indicando que, apesar de tudo, o prazer ainda é um objeto de desejo.
Novos heróis – Outras maneiras de viver o sexo começam a se desenhar. Diferentes, mas nem por isso piores. "Quando eu era adolescente, podia ter orgasmos se o cara pegasse no meu ombro ou me beijasse", recorda Tai Castilho, 56 anos, diretora do Instituto da Família, de São Paulo. "Talvez uma adolescente de hoje não sinta nada com isso. A idéia do sexo acompanha o que está acontecendo em volta", diz Tai. E muito do que está acontecendo hoje não é assim tão estranho. Na Internet, sexo é a palavra mais pesquisada. Em apenas dois provedores é possível encontrar cerca de oito mil páginas sobre sexo. E como os homens compõem a maioria do público da Internet, há uma oferta incrível de nudez feminina. Infindáveis listas indicam o tipo de nudez oferecida: nu total, acidental, saia levantada, câmera escondida. Há fetiches mais esquisitos, é claro – até homens que se excitam com mulheres usando colares ortopédicos. Mas o comportamento da maioria é bastante comum. Uma pesquisa feita ao longo de quatro anos, com 34 mil assinantes americanos da Internet, 70% deles de 18 a 50 anos e 74% do sexo masculino, revelou que 47% perderam a virgindade com um namorado ou namorada. Sexo oral (49%) e masturbação (39%) são os campeões numa lista de centenas de preferências sexuais.
O perfil dos amantes foi o que mudou. A mulher trocou a pureza pela travessura. Subitamente, centenas de moças fazem questão de bradar que nunca foram santas e para isso sacam de chicotes, roupas de couro e posturas agressivas como Tiazinha e Ana Paula Arósio. Até a ex-meiga dos americanos Gwyneth Paltrow posou para a revista Talk exibindo suas garras. Ajudado pela mídia a distinguir quantidade e qualidade, o homem parou de brincar no bloco do "eu sozinho". O amante "pós-moderno", como batizou o escritor Ivan Ângelo em sua coluna na revista Playboy, acha excitante dar prazer à mulher. São novos sons na música do sexo. Para o francês Gillebaud, autor de A tirania do prazer, "desaprendemos a arte do equilíbrio e a virtude do silêncio, que perpetuavam – e de forma mais inteligente do que se imagina – o instável equilíbrio do desejo." Depois de tanta exibição, procura-se um lugar discreto e protegido para amar. Há fortes sinais de que isso ainda existe.
Colaboraram: Carolina Trevisan, Eliana Castro, Lu Gomes, Marta Góes (SP) e Valéria Propato (RJ)