A auxiliar de cozinha Claudete Manoel começou a trabalhar cedo e deixou a escola. Teve de esperar quase 20 anos para realizar o sonho de fazer faculdade. Hoje, aos 35 anos, ela se orgulha de estar cursando Enfermagem. E só um outro motivo a deixa ainda mais feliz. A filha Richele, 14 anos, não corre o risco de ter as mesmas dificuldades. A garota faz parte do projeto Geração XXI, que assegurará os estudos a 21 jovens negros até o último ano da faculdade. Financiado pela Fundação BankBoston, o projeto tem apoio da Fundação Cultural Palmares e é coordenado pela organização não-governamental Geledés – Instituto da Mulher Negra. As 12 meninas e os nove meninos foram selecionados entre alunos de escolas públicas paulistas com renda per capita de até dois salários mínimos na família. As maiores exigências: cursar a oitava série em 1999 e gostar de estudar. Eles terão o que toda criança deveria ter do Estado por direito: educação de qualidade para competir na carreira que desejarem. Além disso, vão desenvolver a consciência de cidadania e estudar os problemas da raça. "No Brasil, os negros estão na base da pirâmide sócioeconômica", afirma a historiadora Maria Aparecida da Silva, do Geledés.

As pesquisas mostram a crueldade dessa situação. O índice de pessoas sem ou com instrução de menos de um ano é três vezes maior na população negra. São 30,l% de pretos, 29,3% de pardos e 11,8% de brancos (classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). "Esperamos também que esses jovens interfiram em suas comunidades de origem." Na verdade, isso já está ocorrendo. O próprio projeto não se limita à criança selecionada Abrange o ambiente familiar e até o escolar. Desde março, esses garotos frequentam a escola de manhã e, à tarde, têm aulas com professores do Núcleo de Educação e Formação Política do Geledés, visitam museus, vão a teatros e a cinemas e participam de oficinas sobre cidadania, ética e diversidade racial. Uma vez por mês, realizam os Cafés Culturais – debates com profissionais afinados com o projeto. A bolsa inclui ainda vale-transporte, tíquete-refeição, convênio médico-odontológico e R$ 50 por mês para o adolescente, mais um salário mínimo para a família. Ajuda que altera a qualidade de vida das famílias. A de João Marcelo da Cruz, 15 anos, por exemplo, tem 14 pessoas – quatro adultos e dez menores de dois a 17 anos –, todos morando em dois cômodos. "Agora não preciso largar os estudos para trabalhar. Posso pensar nisso no futuro", diz ele com alívio. Para João, o futuro é trabalhar como engenheiro eletrônico e "ser alguém na vida", como diz sua mãe, Regina.

Michele, que não sabe ainda se quer ser dentista ou professora, conta que preconceito racial e valores da raça passaram a fazer parte do papo com os amigos. "A gente começa a falar sobre isso e não pára mais", diz. Ela também não atura mais piadas racistas feitas pelos colegas de escola. "Antigamente, eu ouvia calada. Até chorava. Agora reajo. Mostro que não estou gostando e que a pessoa não está agradando. Aí, ela é que fica sem graça", relata. Segundo Maria Aparecida, o preconceito costuma ser ignorado pelas escolas. Por puro despreparo ou por omissão dos professores, a tendência deles é silenciar e negar que a discriminação exista. "A exclusão social do negro começa na escola. Os professores até repreendem o aluno que manifesta racismo, mas não aprofundam o assunto", explica ela. Para evitar que fechem os olhos para os conflitos sociais que também existem dentro da escola é importante conscientizá-los. "A discriminação mais cruel é a da brincadeira, porque não é combatida, é constante e mina, pouco a pouco, a auto-estima."

A transformação que um projeto como esse pode produzir nas famílias é notável. Daniela, que quer ser designer de moda, sempre viu a luta da mãe para criá-la e aos dois irmãos mais velhos. Também sempre testemunhou uma posição positiva quanto à ascendência negra. "Somos o que somos sem nunca ter escravizado outra raça. Devemos nos orgulhar disso e buscar a própria história", defende a mãe, a auxiliar de enfermagem Elizeth Barbosa. Com instrução garantida, Daniela achou que era hora de a mãe melhorar a sua. "Estudamos juntas e tomo as lições dela", diz a menina.

Na casa de Rogério Juliano, um garoto tímido que pretende ser engenheiro eletricista, não há um minuto de silêncio nos últimos tempos. Se não são as serras elétricas do pai, marceneiro, são os ensaios do grupo de pagode liderado por Rogério. O convívio com os amigos do projeto o deixou mais desembaraçado. Ele abandonou as medalhas de judô, que treinou por quatro anos, por instrumentos musicais e contagiou a família. Formou com os dois irmãos e dois primos o grupo de pagode À Flor da Pele. A diferença é que Rogério agora sabe que, mesmo amando a música e o esporte, esses não são os únicos caminhos que ele pode trilhar para o sucesso.