11/08/1999 - 10:00
A nova moda em Brasília é falar de pobreza. O assunto dominou as discussões no Congresso na última semana, mobilizou os partidos, ocupou a atenção da mídia. Parece até que subitamente os políticos descobriram que 40 milhões de brasileiros vivem em situação de miséria. Na quinta-feira 5, o presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), ocupou a tribuna por mais de três horas para apresentar, em meio a ecléticas citações que foram do iluminista francês Voltaire ao roqueiro baiano Raul Seixas, o seu projeto de erradicação da pobreza. O prodígio, de acordo com o projeto do senador, poderia ser alcançado em dez anos com a criação de um fundo alimentado por um punhado de receitas já existentes e mais algumas contribuições extras sobre produtos supérfluos. O presidente do PMDB, Jader Barbalho (PA), aproveitou para tirar a sua casquinha. Pegou da cartola sua solução para acabar com a fome, segundo ele, mais simples: bastaria azeitar a máquina da Receita Federal e fechar as brechas usadas pelas empresas para fugir de impostos. Como os políticos resolveram disputar a paternidade dos pobres, o ministro da Fazenda, Pedro Malan, virou o alvo. "Eu perguntaria ao meu querido amigo ministro Malan se, em cinco anos de governo, ele recebeu um só pobre em seu gabinete", provocou ACM em seu discurso. Estava reaberta a temporada de caça.
Malan também está levando bordoadas nos seus embates internos no governo pela preservação do ajuste fiscal. Numa tentativa de manter o controle sobre os fundos constitucionais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, que o presidente prometeu ao PMDB, a equipe econômica fez, há duas semanas, uma jogada sorrateira. Reeditou uma medida provisória que submetia as decisões sobre os investimentos do fundo ao crivo da Fazenda. O ministro da Integração Nacional, senador Fernando Bezerra (PMDB-RN), estrilou. Na sexta-feira 30, assim que tomou conhecimento da edição do Diário Oficial, telefonou para o chefe da Casa Civil, Pedro Parente, e ameaçou não tomar posse se a MP não fosse retificada. Por causa da saia justa, um suplemento extra do D.O. teve de ser preparado às pressas. Na segunda-feira 2, um dia antes da posse de Bezerra, a MP foi republicada com as modificações exigidas pelo ministro, que excluíram a Fazenda da gestão dos fundos. "Foi um erro técnico", tentou desculpar-se Pedro Parente. O PMDB fingiu que acreditou.
Outra trombada de Malan foi com o PFL e o PPB. Há duas semanas, o governador de Santa Catarina, Esperidião Amin (PPB), conseguiu empurrar para o Tesouro a dívida de R$ 514 milhões do Estado com o instituto de previdência dos funcionários. Para arrancar o contrato que torna a dívida um papagaio federal, o senador Jorge Bornhausen (PFL-SC), em um telefonema a Malan na quarta-feira 28, chegou a ameaçar com a renúncia à presidência do PFL. O ministro estava adiando a conclusão do negócio sob o pretexto de que o governo catarinense acumulava com a União uma dívida atrasada de R$ 45 milhões. Depois do ultimato de Bornhausen, Malan tratou de redigir o contrato permitindo a renegociação do jeito que Amin queria. Na sexta-feira 30, o ministro mandou o texto por e-mail ao governador a tempo de o contrato ser assinado juntamente com a reedição da MP. Os planos de Amin não são nada austeros. Ele pretende contrair um novo empréstimo junto ao mesmo instituto de previdência e quer usar o dinheiro para pagar salários atrasados e fazer caixa.
Na verdade, Malan tentava empurrar com a barriga a operação porque ela pode significar um rombo bilionário nas contas do governo. Se outros Estados conseguirem o mesmo tratamento, a fatura pode superar os R$ 20 bilhões. Os governadores já conseguiram um importante aliado. Jader Barbalho, relator da MP que deu o benefício a Santa Catarina, avisou que não vai permitir exclusividade. "Não quero prejudicar os catarinenses, mas os Estados têm de receber tratamento igual", adverte. Como não há mágica, a conta que for para o Tesouro terá de ser compensada com mais arrocho. E na divisão dos custos, a maior parte do sacrifício costuma sobrar é para os mesmos clientes que os políticos diziam, na última semana, estarem tão empenhados em defender: os pobres.
A nova onda antipobreza é apenas mais uma marola brasiliense. Interessa aos governistas, sem abrir mão de seus cargos, dissociar-se da política econômica que segurou a inflação à custa do aumento do desemprego e da estagnação do PIB. Os baixos índices de popularidade de FHC mostram que passou da hora de continuar dando apoio à política de arrocho ditada pelo FMI, quando as eleições municipais do próximo ano já estão no horizonte. "Políticas compensatórias como as propostas por ACM não acabam com a pobreza. Só servem para perpetuá-la. Isso é hipocrisia e populismo", contestou o senador Roberto Freire (PPS-PE), voz dissonante no coro formado no Congresso na última semana.
Para livrar-se dos desgastes que a política econômica não pára de produzir (na quarta-feira 4, foi anunciado o quinto reajuste no preço dos combustíveis em seis meses), ACM não hesitou em torpedear um ex-protegido político. Até o episódio da polêmica MP da Ford, em que Malan tentou resistir à concessão dos benefícios fiscais para que a montadora se instale na Bahia, o cacique baiano deu seu total apoio ao ministro. Depois da reforma ministerial em que FHC preferiu fortalecer o tucanato paulista, ACM sentiu-se mais livre para atacar. "Ele é uma metaformose ambulante", ironizou o senador José Eduardo Dutra (PT-SE), em referência a uma canção de Raul Seixas, o novo ídolo de ACM, de quem pediu emprestado os versos de Ouro de tolo para dizer "Eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou um dito cidadão respeitável…" "Eu tenho uma porção de coisas grandes para conquistar e eu não posso ficar aí parado." A definição de Dutra é precisa para os contorcionismos políticos do senador, que, depois de apoiar todos os governos que contribuíram para tornar o País um dos campeões das desigualdades sociais, tenta agora reabilitar a imagem de coronel e pavimentar a sua candidatura à Presidência em 2002.
Afagos – Mesmo com os ataques a Malan, o discurso que ACM fez no Senado saiu mais brando do que a versão original. Os trechos com as críticas mais pesadas ao governo foram expurgados depois que Fernando Henrique, temeroso com a repercussão do pronunciamento, tratou de fazer alguns afagos no babalorixá. Mandou um bilhete recheado de elogios à iniciativa de ACM e convidou-o para um encontro no Palácio da Alvorada na noite da quarta-feira 4, onde se esmerou nos rapapés. "Tem muita gente querendo fazer intrigas para atrapalhar a nossa relação, mas eu não abro mão do seu apoio", desmanchou-se o presidente na conversa. Na mesma noite, em um jantar na casa de Bornhausen, os dois já trocavam sorrisos e gentilezas. Mas a eficácia do jogo de sedução de FHC, desta vez, tem limites. Um dia depois do amistoso encontro, a executiva do PFL anunciou que daqui para a frente só vai apoiar o governo quando achar conveniente. "O Ministério é um ninho de tucanos paulistas que ocuparam todos os cargos com dinheiro e poder. Se fracassar, a conta é do PSDB", disparou o neopefelista Roberto Brant (MG).
Também relegado na reforma ministerial, o PMDB percebeu a jogada do PFL e, como sempre, foi no vácuo de ACM. A cúpula do partido decidiu que não quer mais compromisso com votações impopulares e que adotará uma linha de maior independência. A emenda que estabelece uma idade mínima para aposentadoria e a lei de responsabilidade fiscal, dois pontos considerados fundamentais pela equipe econômica para o ajuste das contas públicas, foram para o fim da fila de votações na Câmara, que é presidida por Michel Temer (PMDB). "O compromisso do partido é com a opinião pública", sinalizou Jader. Para a bandeira social-democrata não ser roubada de vez pelos novos paladinos da pobreza, nem o PSDB está disposto a continuar dando apoio irrestrito. "Se eu fosse o presidente, assumiria a derrota parcial do Plano Real e faria um discurso claro perante a sociedade de que precisamos ter um período de mudanças", deu o tom o ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, vice-presidente do PSDB, num seminário em São Paulo na sexta-feira 6. As críticas dos aliados à política econômica, até agora, não produziram nenhuma indicação de que a solução para a miséria vai sair do papel. Mas essa retórica já serviu para empurrar o ajuste fiscal para fora da agenda política.
Colaborou Sônia Filgueiras
A fome ronda a Esplanada
O senador Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA) e seus pares no Congresso não precisam ir longe para encontrar a pobreza. Basta dar uma olhadelha para fora das linhas do prédio com duas cúpulas, uma côncava e uma convexa, projetado por Oscar Niemeyer. Há um cinturão de miséria em torno do centro do poder do País. Meninos pedindo esmola são figuras habituais na entrada do Congresso e na porta dos Ministérios. Pelas avenidas da Esplanada dos Ministérios, tromba-se também com facilidade com catadores de papel que pilotam carroças puxadas por cavalos magros. O trabalho desses excluídos da modernização é recolher lixo na portaria de cada Ministério para vender papel a empresas de reciclagem. Grande parte deles é conterrânea de ACM. Eles não suportaram mais a vida miserável na Bahia e migraram para a capital federal com suas famílias em busca de emprego. Uma das favelas onde moram fica a pouco mais de 500 metros do Palácio do Planalto e do Congresso, em frente à suntuosa sede do Superior Tribunal de Justiça. Ela agrupa cerca de dez famílias e 80 pessoas. Provenientes em sua maioria da região centro-oeste da Bahia, chegaram a Brasília há cinco ou seis anos e, sem nenhuma qualificação profissional, foram catar papel no lixo para sobreviver. Já moraram mais perto do poder. Ergueram barracos no terreno onde hoje estão sendo construídas as torres de vidro da nova sede da Procuradoria Geral da República, mas foram expulsos de lá quando as obras começaram. Ameaçados agora com nova expulsão pelo governo do Distrito Federal, os catadores de papel não levam muita fé nas promessas do conterrâneo. Dalvino Jesus Leite, natural de Barreiras (BA), 25 anos, cinco filhos, deu esta entrevista a ISTOÉ.
ISTOÉ – O sr. já ouviu falar no projeto do senador Antônio Carlos Magalhães para acabar com a pobreza?
Dalvino Jesus Leite – Já, mas não espero nada. Sou da Bahia e tive que sair de lá porque não tinha emprego nem nada.
ISTOÉ – O que o sr. fazia em Barreiras?
Dalvino – Trabalhava em uma fábrica de tijolo. Ganhava R$ 50 por mês. Aqui, apesar de morar em um barraco de tábuas e papelão, dá para tirar R$ 100 com o papel velho.
ISTOÉ – Quem governava a Bahia quando o sr. veio para Brasília?
Dalvino – Era Antônio Carlos e depois aquele que ele colocou em seu lugar.
ISTOÉ – O sr. gostaria de voltar para casa com sua família?
Dalvino – Só se me dessem um pedaço de terra. Como antes, de jeito nenhum. Voltar para a Bahia é morrer de fome.
Eduardo Hollanda